As contradições do Bolsa-Família*

O bolsa família é de uma importância inconteste, já que por meio do programa milhões de pessoas tiveram a oportunidade de acessar à cuidados mínimos, como alimentação e saúde. Isso em si é o suficiente para justificar o investimento, independentemente de seu uso político.

Inclusive, muito já foi dito sobre os benefícios sociais do programa, que são óbvios e extensos. Mas pode-se somar à essa lista de benesses um outro aspecto do Bolsa Família que nada tem de marginal: seu efeito multiplicador de renda. Por meio do programa se distribui dinheiro para famílias em situação extrema de pobreza e risco. Aquele ínfimo valor é integralmente usado para compra de bens, de modo que o dinheiro retorna para o mercado na forma de consumo. Ao fazê-lo, esses recursos aumentam a demanda pelas mercadorias que fazem parte da cesta básica daquelas famílias, remunerando no processo os varejistas, os distribuidores e mesmo os industriais que produzem tais bens.

Além disso, como os produtos consumidos por essas famílias são de um valor agregado menor, sua maior parte é produzida local ou nacionalmente. Dessa forma, não apenas o Bolsa Família auxilia como reforço de renda para os que estão inseridos no programa, como serve para impulsionar a indústria e o varejo dentro do Brasil, criando empregos em cadeias produtivas cujos encadeamentos são quase inteiramente nacionais, gerando renda no entorno. Em outras palavras, muitos dos emprego, assim como muita lucratividade empresarial nos últimos 12 anos, estiveram associados ao bolsa família.

Isso significa dizer que muita gente de classe média e alta que hoje critica o Bolsa Família deve (grande) parte de sua renda ao programa.

Porém, é preciso destacar algumas críticas para além dos argumentos simplistas que ressaltam o pretenso malefício de se instituir um sistema de assistencialismo e o (legítimo) uso político do programa. A primeira, e mais séria, está no fato de que o Bolsa Família é um programa assistencial que se pauta pela não constituição de direito. Ou seja, ele não decorre de uma lei perene que garanta a estabilidade da assistência, mas sim advém da boa vontade do governante de situação. Ao não gerar direito, o governante pode imprimir cortes por contingenciamento, expandir ou mesmo o eliminar de maneira discricionária, mantendo as famílias assistidas em constante estado de incerteza.

Por outro lado, a relação travada entre as famílias e o Estado aparece como um processo de prestação de favor, como se por meio do programa elas recebessem algo que não lhes coubesse de fato, mas é suprido de forma paternalista. Isso quando na verdade a constituição federal já estabelece em suas cláusulas pétreas que devem ser assistidos os direitos mínimos do povo. Ou seja, o bolsa família pode ser enxergado como uma obrigação do Estado.

Além disso, ao contrário do falam os estúpidos detratores da direita, transferências monetárias como o Bolsa Família são políticas tipicamente capitalistas.

Foi Milton Friedman, estrela máxima da escola de economia de Chicago, um dos pais do neoliberalismo, quem afirmou que as únicas políticas sociais que o Estado poderia conduzir seriam as transferências monetárias diretas. Segundo seu argumento, esse instrumento preservaria a capacidade das pessoas escolherem “racionalmente” o destino da ajuda, segundo suas expectativas e aspirações. Não foi à toa que, sim, os programas que deram origem ao bolsa família — auxílio-gás, bolsa-escola, bolsa-alimentação etc. —, surgiram num governo neoliberal (ou neobobo, como FHC preferiria ser chamado).

Da mesma forma que toda política social capitalista, o Bolsa Família tem três objetivos primordiais: (i) conter os ânimos sociais, de modo a evitar levantes e rupturas populares ao oferecer acessos mínimos de consumo para as pessoas; (ii) retroalimentar o processo de valorização e acumulação de capital, o que faz por meio do efeito multiplicador de renda; (iii) consolidar a hegemonia social do capitalismo, alimentando a ilusão de que, a partir desse modo de produção, é possível manter um nível mínimo de bem-estar social e quiçá, talvez, ascender socialmente. Nesse último quesito, é preciso perceber que os governo petistas, longe de se constituírem como socialistas, contribuíram para consolidar a hegemonia capitalista no Brasil. O fizeram tanto por meio do reforço ideológico de que é possível um pacto de desenvolvimento universalmente benéfico, como através da apresentação de uma esquerda politicamente domada pelo interesse do capital, ou seja, uma não-esquerda.

É preciso dizer que o programa é necessário, imprescindível até, porque garante comida a quem precisa, mas sem dúvida somam-se contradições. Seu papel estruturante em nosso capitalismo periférico é sinthoma dessa existência contraditória, necessário ao mesmo tempo em que também é nocivo do ponto de vista da formação de consciência crítica. O Bolsa Família simplesmente contribui para limitar as possibilidades de formação de uma esquerda ativa e combativa, seja pela via prática ou ideológica, ao atenuar os humores sociais e afastar a possibilidade de radicalização do povo.

Mas isso é um mal necessário. Afinal, diferentemente do que pensam os capitalistas e os políticos neoliberais, não se pode exigir que um povo sofra em nome de uma ideologia.


* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).

Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.

Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.


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