“Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado.”
– Friedrich Engels[1]
O fantasma da “ditadura do proletariado” é sempre usado como bala de prata contra a esquerda, prova das relações diabólicas de todo socialista. Graças à essa pecha infame, parafraseando uns velhos e conhecidos comunistas, até mesmo a própria esquerda evita o termo, como que proibido, verdadeiro sacrilégio em tempos de hegemonia da [pseudo] democracia representativa de direito [leia-se “oligarquia capitalista”]. Tudo por conta da ignorância reforçada pelos véus da ideologia.[2]
É preciso eliminar essa dúvida e defender, sim, que o objetivo maior é uma ditadura do proletariado: a democracia direta e irrestrita, com respeito radical à diferença, supressão das liberdades do mercado, eliminação da propriedade privada de capital e enaltecimento das liberdades individuais. Vamos aos termos?
A sentença de Engels ao final do texto que preparou como introdução para o livro de Karl Marx A Guerra Civil na França não poderia ser mais clara. Diante de toda desinformação acerca do que viria a ser a “ditadura do proletariado”, Engels vaticina: a ditadura do proletariado é como foi realizado o governo nos 72 dias da Comuna de Paris.
Isto deveria ser suficiente para eliminar toda a discussão. Esquerdistas, a partir daí, deveriam se tonar defensores ferrenhos da possibilidade de instauração da ditadura do proletariado. Liberais deveriam recolher seus argumentos e buscar outras formas de disseminar suas ideias. Capitalistas deveriam temer a palavra, sim, mas não poderiam publicamente se colocar contra sem atrair para si a fúria da sociedade civil.
Mas, porque não é assim? Porque esquerdistas não assumem, ou mesmo se colocam contrários? Porque o termo é arma política nas mãos do direitista [raivoso]?
Simples, por desconhecimento histórico. Em primeiro lugar, poucos conhecem a própria sentença de Engels, que na verdade coroa um texto que explicita esta análise. E, tampouco a própria Comuna de Paris é realmente conhecida, isto graças à contínua desinformação histórica disseminada pela escola a serviço do capital. Dá urticária quando alguns pseudo intelectuais, com seus manuais anti-idiotice que na verdade são armas de idiotização, afirmam que as escolas no Brasil estão tomadas por uma conspiração de esquerda. Desconhecem — na verdade, fingem não saber — que a instituição educacional brasileira, depois de sua reforma capitalista, se tornou um bastião do não-pensar quase exclusivamente capitalista. Não apenas não trazem a termo as estruturas da formação da ignorância contemporânea, como não preparam para a reflexão.
Se a ditadura do proletariado foi ensaiada na Comuna de Paris, precisamos olhar para esta experiência política única e tentar dali extrair este entendimento. Claro, não é possível fazê-lo em um post de um blog, mas quero elencar alguns pontos.
Primeiro, Comuna tomou por regime político, se assim podemos classificar, a democracia direta. Os cidadãos, todos, eram convocados para decidir coletivamente os rumos da Comuna. O que o coletivo decidia, era implementado pelo próprio coletivo — ou seja, não havia separação entre quem decidia, quem executava e que indivíduos realizariam o trabalho, o coletivo era responsável pelas suas escolhas.
Segundo, todas as formas oficiais de discriminação — gênero, etnia, religião, origem, nacionalidade, etc. — foram abolidas pela Comuna. Os cidadãos não foram transformados em iguais, mas suas especificidades particulares não seriam motivo de segregação.
Ainda, a propriedade foi distribuída, não abolida. As pessoas continuavam a manter o direito sobre seus bens pessoais, sobre os seus pequenos negócios, suas casas. Mas, o que sobrava nas mãos dos poderosos burgueses e resquícios da elite feudal foi redistribuído. Sabiam que a propriedade individual não é o problema do capitalismo, e sim a propriedade privada do capital, que serve para construir e apropriar valor em benefício de poucos.
Além disto aboliram a pena de morte, tornaram eletivo o cargo de juiz, desintegraram o exército regular, aboliram o trabalho noturno, dobraram salários de professores, projetou-se a auto-gestão em fábricas, a educação se tornou gratuita, residências vazias foram desapropriadas e ocupadas, entre outras reformas práticas importantes. Há muitas propostas da Comuna cuja adoção em nosso mundo contemporâneo representaria um avanço civilizatório praticamente sem precedentes. A maneira como a Comuna de Paris se organizou mostra, definitivamente, que a ditadura do proletariado não é algo ruim. Pelo contrário, é talvez o que há de mais desejável em termos de liberdades individuais e expansão das possibilidades de desenvolvimento social. A ditadura do proletariado significa, nada mais nada menos, que a democracia direta, a educação universal e de qualidade e a liberdade individual para se desenvolver.
O que dizem por aí sobre a pretensão à esquerda (demoníaca) de uma ditadura do proletariado é fruto de engano.
Claro, a Comuna de Paris durou apenas 72 dias, pouco mais de dois meses. Foi esmagada pelo exército francês ajudado pelas tropas prussianas. Lembrando que até o início da Comuna esse dois exércitos disputavam um conflito armado aberto, que envolvia a posse de terras que seriam partes de uma ideia de reino alemão — o primeiro Reich — sonhada por Otto von Bismarck. Inclusive, é preciso dizer, o exército francês e o exército prussiano, juntos, receberam a ordem de não poupar vidas em Paris. Assim, a elite local campanada em Versalhes aproveitou a oportunidade para massacrar o povo pobre e esfomeado, que tanto não parece bem aos olhos da burguesia.
Teriam as propostas da Comuna prosperado caso não fosse esmagada? Teria mesmo a democracia direta levado a uma vida mais justa? A História não se propõe perguntas fora da história. Mas, do ponto de vista da Gestão, do Planejamento, estas são as perguntas que importam. Porém, só poderíamos responde-las de uma forma: testando, implementando estas mudanças, enfrentando seus desafios e operacionalizando seus termos.
A proposta aqui é um convite: já que o capitalismo, há mais de 40 anos em crise enquanto os ricos se tornam mais ricos, não está funcionando, vamos implementar a ditadura do proletariado e ver o que acontece?
A minha sugestão é que façamos a revolução (não, a revolução não precisa ser violenta; e, sim, pode ser feminista, negra, altermundista, desde a periferia, LGBTQIA+, é essa revolução mesmo que queremos) para implementar a DITADURA DO PROLETARIADO (mãos em riste!), pois nada que se faça no mundo pode ser pior que o capitalismo.
[1] ENGELS, Friedrich. Introdução a guerra civil na França, de Karl Marx (1891). In.: MARX, Karl.A guerra civil na França. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. (p.187-197).
[2] Ideologia é uma doença cognitivo-intelecto-degenerativa infectocontagiosa cujo vetor dedicado é a mídia — não importa se impressa, radiofônica, televisiva ou digital (hipertexto, nuvem ou redes sociais) —, que atinge desde jovens imberbes em fase de formação, idosos e tios-do-orkut, até os mais preparados adultos. Seus sinthomas mais frequentes são o desinteresse intelectual, a ignorância histórica, grau acentuado de apatia política, consumismo e subserviência sistêmica. Mas também pode se manifestar através de surtos — episódicos ou crônicos — de ódio acumulado e violento contra a crítica, a esquerda, à pessoas de outras etnias, gêneros, religiões ou nacionalidades; vindo por vezes a se mascarar como expressão de ação política por meio de indignação moral reacionária, mas normalmente vazia de conteúdo, argumentos ou ações efetivas.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.
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