É muito comum um articulista da bola, seja jornalista ou ex-jogador, comparar o estado de coisas do futebol daqui com o de além mar, do Brasil com a Europa. Não raro concluem que estamos atrasados, produzindo um jogo aquém de nosso pretenso “talento natural”, pobre em espetáculo, enquanto que na Europa pratica-se o futebol “moderno”. Na minha modesta opinião, essa é uma comparação espúria, constrangedora para quem faz, além de pouco informativa para quem lê. Vamos aos fatos?
Durante 500 anos as riquezas do novo mundo, das Américas Central e do Sul, assim como da África e Ásia (ouro, matérias-primas, escravos), foram transferidas para a Europa, os quais, com tudo aquilo construíram infraestrutura urbana, de capital e tecnológica que hoje os mantém a frente dos demais.
Lá, as empresas são maiores, mais fortes e controlam os mercados transnacionais. Na Europa, não são necessários muitos novos investimentos em infraestrutura, como saneamento, transporte e segurança, visto que suas populações não expandem, mas encolhem. No “velho mundo”, governos montaram um aparato (mínimo) de assistência social, educacional e de saúde para a população (que os capitalistas estão agora lutando para extinguir). Vêm acumulando riquezas há muito mais tempo que países da América do Sul (os países europeus juntaram muito por meio de roubo, pilhagem, contrabando e corrupção).
Com mais recursos e menos escrúpulos, é óbvio que a tendência é que tudo lá seja melhor, mais rico e bonito. Inclusive o futebol, a única mísera coisa em que um país terceiro-mundista dependente era capaz de superá-los minimamente. Será que se acreditava que, com toda a arrogância de centro do mundo e ampla disponibilidade de recursos, a Europa deixaria que uma ex[?] colônia os superasse por muito tempo? Até demorou para reverterem a situação.
A sangria de craques (cérebros) dos países pobres, os investimentos desproporcionalmente pesados na estrutura interna, a formação de um mercado de massa em torno do futebol, a profissionalização da gestão (taylorista, é verdade, mas ao menos sistemática) CLARO que não é fruto de uma conspiração simplista. Mas é um processo contra o qual é até ilusório pensar que é possível lutar a partir dos limitados recursos do Brasil.
A equipes de futebol europeias são seleções transnacionais, cujo plantel raramente exibe um jogador local em destaque. Jogadores, comissão técnica, todos de fora (afinal, eles até têm dinheiro, mas o talento é nosso). Os primeiros, das margens da economia-mundo, negros, latinos; os técnicos, por sua vez, brancos, europeus, reproduzindo de forma explícita e gritante a divisão intelectual do trabalho de forma racista.
Uma pausa, por favor. Quero convidar x leitorx a fazer um breve exercício: tente lembrar quantos técnicos de clubes de elite são negros na Europa; na sequência, faça uma lista dos jogadores principais e compare as origens étnicas.
O jogo é dinâmico, mas a fisionomia dos jogadores raramente sai do blasé de quem está ali meramente pelo dinheiro — não se trata de empenho, veja bem, pois a produtividade é muito importante, mas o desfrute e o prazer do jogo parecem nulos. O jogo é físico, técnico, objetivo. Vencer e entreter, de preferência com velocidade e intensidade, como que para não deixar que o espectador reflita sobre o espetáculo triste que está presenciando.
É interessante (leia-se “deprimente”) ver, por exemplo, como eles tratam jogadores brasileiros lá. Não estão interessados em desenvolvê-los, em formar, em prepara-los para a vida após sua idade útil como futebolista. Apenas querem usá-los enquanto estiverem minimamente ativos, para depois descartá-los, desovando-os de volta ao Brasil (ou outros países na margem) onde poderão desfilar o descenso de habilidade e aptidão física rumo a aposentadoria, muitas vezes de forma constrangedora.
Quando não precisam de um atleta para uma posição, são capazes até de investir numa contratação para simplesmente tirar o jogador de ação em outra equipe, não permitindo que avancem em sua carreira. Existem inúmeros técnicos que agem assim na Europa. Pagam uma fortuna em salários, direitos, apenas para os anular. Há uma contrapartida? sim, mas, o que vale mais, O dinheiro ou a possibilidade de desenvolver suas habilidades e encontrar satisfação no seu trabalho? As pessoas não são meramente bichos acumuladoras de grana (ao menos as honestas e livres de desordens mentais e/ou comportamentais).
Tudo isso para dizer que não vejo o futebol na Europa como um modelo de sucesso.
Eles pegaram o esporte bretão, cuja a prática beirava a arte no Brasil, para transformar numa indústria de entretenimento. Consome atletas como se os utilizasse para alimentar os fornos das siderúrgicas — levando-os a pensar exclusivamente na grana (no que estão certos, individualmente falando) —, enche os bolsos de traficantes de pessoas e alimenta simbolicamente as torcidas organizadas, cujo racismo, violência e ódio faz lembrar os partidos nazifascistas (os quais, aliás, também são uma invenção da Europa). Ou seja, ao invés de extrair o melhor das pessoas, a Europa decanta o pior e cospe os restos em nós.
Comparar o Brasil com a Europa é injusto em diversos níveis. O primeiro e mais evidente é o da disparidade financeira. Mas, ainda, enquanto que o Brasil fez de um esporte insosso uma arte com Pelé, Leônidas da Silva, Rivelino, Tostão, Zico, Falcão, Careca e muitos outros, a Europa o transformou numa fábrica, com exploração, escárnio e racismo. Há uma disparidade de alma que, infelizmente, estamos importando. A morte do futebol será num estádio inglês lotado, com os melhores atletas do mundo se engalfinhando pela grana, para uma plateia que não se importa com eles. A cor e o brasão dos clubes não importam.
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