“Bárbaro” é um termo xenófobo. Os gregos antigos tratavam assim todos os povos que não falassem seu idioma, cujos fonemas soavam a eles como um tipo de rugido, um “bar, bar, bar”. É isso mesmo. Os gregos antigos não viam outros povos como pessoas, mas quase como animais, o que, no caso deles, não seria um elogio. Ficou o significado histórico para nós, do bárbaro como um rude, ignorante, incivilizado, avesso ao estudo, bruto (qualquer semelhança com a biografia de algumas de nossas figuras públicas não é mera coincidência).
A barbárie, por derivação, é a obra de um(a) bárbaro(a).
Brasília, domingo, dia 8 de janeiro de 2023, depois do meio dia. Uma turba collorida de verde e amarelo invade a Praça dos Três Poderes, depois as sedes das lideranças máximas do Executivo, Legislativo e Judiciário, para destruir, depredar e desgraçar — entre outras ações ainda mais escatológicas — tudo pela frente. Em grito de ordem, exigem um golpe de Estado para reconduzir ao poder o ex-presidente e candidato derrotado nas últimas eleições. Estariam defendendo o Brasil, mas o nome do que fizeram é terrorismo.
Não me alongarei, todes conhecem a história à essa altura.
Devo admitir que é difícil para mim formular completamente uma opinião linear sobre o ocorrido. Meu domingo, até então plácido, não foi necessariamente de perplexidade ou surpresa — afinal, a memória do 6 de janeiro de 2021 nos EUA estava bem vívida —, mas sim de preocupação sobre como racionalizar o ocorrido. Depois de um par de dias, vejo que mentes muito mais bem informadas e preparadas do que eu fizeram um excelente trabalho nesse sentido. O que resta dizer?
Poderia repudiar, mas já foram publicadas tantas notas assim, que esse trem já partiu. Havia a possibilidade de falar das consequências políticas — fortalecimento do novo governo, enfraquecimento da direita, ressaca moral de empresários e figurões bolsonaristas —, mas já está tudo por aí também. Descrever minha indignação seria fútil, tanto porque é tamanha que não encontro palavras, quanto porque é tão idiossincrática que não encontraria público (não que eu pense que alguém leia isso aqui, mas vá lá).
O que fica revolvendo no fundo lamacento do rio de minha consciência é essa palavra, “barbárie”. Uma linha de convivência foi ultrapassada nesse domingo. Uma parcela significativa da população dissociou coletivamente diante de nossos olhos (telas) atônitos. Tomados por um frenesi, possuídos por uma irracionalidade primal, pareciam contaminados por hidrofobia de hienas (não, não sei se a hidrofobia nas hienas é diferente). Entre participantes e apoiadores distantes, forma-se um grupo ao qual não consigo mais atribuir humanidade.
Sei que esse sentimento é perigoso. Mas, agrediram um cavalo. Estragaram um Portinari. Roubaram um documento histórico — tudo bem, era apenas uma cópia da constituição original de 1988, mas a intenção estava lá — e o dessacralizaram em praça pública. Uma certeza de convivência impossível foi firmada, de modo que a única reconciliação que me parece prática é aquela operada por Moisés no deserto. Não há dúvida, são bárbaros!
Nesse sentido, eles venceram. Não consigo compreendê-los, respeitá-los tampouco, amar nunca. Resta ódio ou indiferença, que é tudo que queriam, nos trazer até seu nível. E mesmo que os entreguemos à lei com temperança e distanciamento, o faremos com uma satisfação que nos corrói. Já sinto isso. São bárbaros!
Oxalá eu esteja errado, mais seu principal intento — afundar uma cunha infectada na ferida que divide o país — me parece que foi alcançado. A ver se haverá nação no meio dos escombros.
São bárbaros…
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