A integração “trunca” da América Latina*

Com o fim da IIª Guerra Mundial, e em meio ao processo de constituição de um novo ordenamento para o Sistema Internacional sob a égide dos Estados Unidos da América, as diferentes regiões ao redor do mundo passaram pelo desafio de repensar sua inserção no plano da acumulação sistêmica capitalista; ou, como opção, alinhar ao bloco soviético que então se oferecia como alternativa; claro, isto não era uma “opção” de fato.

As concertações realizadas no Mount Washington Hotel, Bretton Woods, New Hampshire, às vésperas do final da IIª Guerra com a finalidade de reorganizar o capitalismo mundial, também abriram caminho para extinção d’algumas das instituições dominantes durante fase da centragem inglesa, como o imperialismo característico de seu ocaso. Lacunas estas que foram devidamente preenchidas com novas concepções de ordenamento.

Por exemplo: se na África, Ásia e Oriente Médio, no decorrer dos anos seguintes, a instituição do Estado Nacional se disseminou como padrão de regulação política/econômica típico da Pax Americana, a América Latina passou por um processo de remodelamento de sua estrutura econômica; uma transformação muito longe do que poderíamos chamar revolução, mais um ajuste necessário diante do modus operandi do novo gestor.

Perseguindo o intento de remodelar a integração latino-americana, e a reboque do processo que criou as instituições intergovernamentais que dali em diante gerenciariam o Sistema Internacional, se formou em 1948 a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) vinculada à Organização das Nações Unidas – ONU.

O papel declarado da Comissão foi o de promover a articulação e o desenvolvimento econômico e social dos países membros, além de sua inserção no plano internacional. Foi planejada para ser formar como um corpo burocrático e de pesquisa, associado a um fórum bianual que reúne representantes dos governos sob sua influência nos quais são discutidas metas, programas e resultados das iniciativas de desenvolvimento na região.

Não seria de todo incorreto dizer que a forma da integração internacional latino-americana a partir de 1950 esteve vinculada à atuação da Cepal; porém, acreditamos que na verdade as muitas transformações das orientações cepalinas foram expressão dos diferentes papéis e projetos atribuídos à região na divisão internacional do trabalho ao longo dos dois últimos quartéis do século XX.

Se esta assertiva está correta, podemos então formular algumas questões que podem ser pertinentes para compreender tal processo:

(1) Quais foram estes papéis?

(2) Como os distintos modelos de integração que marcaram a região no período contribuíram para tanto?

(3) E, por fim, qual o vínculo da América Latina com as transformações da regulação capitalista no plano global?

Para estabelecer alguns termos mínimos para debate é preciso, em primeiro lugar, relembrar as faces que o corpo de propostas da Cepal assumiu ao longo dos anos. Para tanto nos fundamentamos no artigo intituladoEvolución de las propuestas de la CEPAL: su aporte al desarrollo de Ricardo Zapata Martí.

1.    A Cepal entre 1949 e 1960

Em sua gênese, os estudos cepalinos concluíram que os países latino-americanos até então se desenvolveram de forma marginal, vinculados de maneira depende às economias dos países centrais. Formaram a conhecida teoria da dependência que contestava, inclusive, a visão neoclássica de desenvolvimento linear.

No cerne de sua argumentação. defendiam que a interação do comércio internacional pela via das vantagens comparativas levava a uma contínua deterioração dos termos de intercâmbio, a qual afetaria principalmente as regiões especializadas em bens primários, ou commodities, como era o caso da maioria dos países da AL.

Neste sentido as propostas da Cepal buscaram contribuir para a promoção da autonomia e do desenvolvimento a partir de programas de substituição de importações, com possibilidade de substituição de exportações (nunca efetivamente realizada).

2. De 1960 a 1980

A partir dos anos 60 se iniciou uma fase marcada por ênfase na integração regional como alternativa de desenvolvimento. A ideia é que a criação de blocos comerciais fortalecesse as economias permitindo que, em conjunto, pudesse negociar termos mais favoráveis no plano externo, além de desenvolver complementaridade econômica interna. A criação dos blocos comerciais acabou por esbarrar exatamente na ausência de complementaridade na estrutura dos sistemas econômicos envolvidos – suas produções pouco diferiam entre si, e mais competiam do que podiam cooperar.

Neste período emerge um fenômeno que, segundo Hummer & Prager, é exclusivamente latino-americano: o pertencimento, por parte de alguns países, a dois ou mais acordos de integração com termos distintos, o que terminava por inviabilizar o desenvolvimento de ambos. Por exemplo, Costa Rica, Guatemala e Honduras, fazem parte do Cafta (que inclui os EUA) e do MCCA (que ainda engloba Nicarágua e El Salvador). Ao pertencer a dois blocos, um mesmo país simplesmente mina as possibilidades de fortalecimento interno de ambos, pois surgem os interesses de comércio cruzado.

3. 1980-1990

Na década de 80 a Cepal passou a se concentrar em tentar criar mecanismos para superar os desequilíbrios externos e internos que se expressavam através de déficits, inflação e incapacidade do Estado em pagar a dívida externa. Os estados locais haviam sido atingidos duramente pela elevação abrupta dos juros de empréstimos no exterior impulsionados pelo aumento dos juros básicos da economia norte-americana, conhecido por “choque Volcker”; a isto se somou as intempéries promovidas pelo dois choque do petróleo na década passada, e a crise fiscal do Estado decorrente do aumento dos gastos.

As medidas propostas pela Cepal associavam planos internos de estabilização com medidas externas de renegociação das dívidas e incentivos à privatização e à exportação para geração de divisas que seriam utilizadas para pagar os débitos.[1] Os resultados foram muito contestados: com o ajuste fiscal veio a recessão e o desemprego, mas não o equilíbrio econômico.

4. 1990-1995

Após a década [perdida] de 80, então as propostas da Cepal se orientaram para a retomada do crescimento. No entanto, as interpretações dependentistas acerca da deterioração dos termos de troca deram lugar a propostas de reformas neoclássicas; durante sua existência, o mainstream da economia se moveu do keynesianismo para o neoliberalismo.

Propunham o crescimento [im]possível sob a sombra do consenso de Washington, que apresentava como solução a abertura de mercados e o alinhamento com a globalização financeira.[1]

Neste período emerge um discurso na Cepal em prol da promoção de competitividade nas economias da região: uma orientação focada na tentativa de promover o desenvolvimento pela via da sistematização de inovações, já incorporando um discurso acerca d’uma pretensa sustentabilidade ambiental. A crença principal está na pressuposição de que a promoção de educação, a construção de consensos para eliminação de divergências e a formação de um bloco regional coeso seria suficiente para alavancar o crescimento econômico.

Interessantemente, o período foi marcado pelo desmonte da escola, da pesquisa autônoma e do Estado; pela falência do Mercosul; e pela acentuação dos divergências internas em países como Brasil, Bolívia, Venezuela e Argentina – estas provavelmente motivadas pela crescente centralização de riqueza associada à visível pauperização das populações.

5.    1995-2000

Entre 1995 e 2000 a Cepal continua a enfatizar a necessidade de promover a competitividade nacional no plano internacional. Sua ênfase está na tentativa de criar consensos internos para que se eliminem incertezas, e assim atraiam investimentos, somado a propostas de reformas do Estado que permitam uma maior acumulação de capital.

A Cepal propõem uma “articulação das políticas macro e microeconômicas”, o que significa simplesmente usar a máquina estatal para proporcionar às empresas melhores oportunidades de lucro. Isto se traduziu num pacto fiscal – que pregava a redução da carga tributária e a contenção de despesas através da diminuição do Estado – mais adoção de um padrão de marco regulatório para criar um ambiente institucional que atraísse investimentos externos e assegurasse a lucratividade do capital. Ou seja, se incentivou as privatizações, o desmonte do Estado e crescente desemprego.

Cada uma destas faces das propostas cepalinas, no nosso entendimento, esteve umbilicalmente conectada aos eixos mais amplos do capitalismo global, e a seus rumos manifestos.

Num primeiro momento na década de 50 foi necessário ao Capital criar condições para enfrentar a alternativa soviética, que se oferecia para substituir o então em frangalhos sistema capitalista. Então, ao capital restava promover o desenvolvimento e a integração das suas zonas de influência, ou perdê-las para o inimigo. Isto permitiu até mesmo que a Cepal ensaiasse alguma autonomia teórica para compreender a realidade latino-americana, chegando a formular um pensamento crítico sobre os espaços econômicos regionais.

Mas, logo que se percebeu que o socialismo da U.R.S.S. não representava um perigo real — e isto se deu, acreditamos, já na década de 60 —, o projeto de integração da América Latina muda. O desenvolvimento da região já não parecia ser mais tão interessante para o centro decisório do Capital. Assim, como afirma James O’Connor num trabalho sobre a crise fiscal do Estado nas décadas de 70 e 80, os países da América Latina passam sistematicamente a transferir recursos e riquezas para o centro, através da bem articulada armadilha de endividamento.

Neste ínterim, a proposta da Cepal de construção de certa autonomia para o desenvolvimento regional muda em direção a esforços para integração na globalização econômica. E isto independente dos resultados sociais adversos que daí poderiam advir, ainda que em termos de discurso se falasse sobre necessário desenvolvimento social.

Assim, retorno ao título desta apresentação, a integração “trunca” da América Latina, não para defender que não houve integração ou que, em paralelo com o trabalho de Fernando Fajnzylber, a integração possível não poderia responder à teorização linear precedente graças as distintas realidades econômicas. A tese aqui é de que a integração possível da América Latina – interna e externamente – foi perfeita e nociva, porém muito bem articulada pelos organismos decisórios: perfeita para assegurar os interesses do Grande Capital, e nociva por desmontar qualquer possibilidade de autonomia que pudesse ter despontado no pós-guerra.

Em outros termos, as mudanças na integração econômica latino americana seguiram as mudanças na estratégia capitalista para chegar à completa hegemonia mundial. Só nos foi permitido algum nível de desenvolvimento autônomo quando isto interessava aos países centrais, o que não é o caso hoje em dia, quando qualquer discurso de autonomia é imediatamente classificado como rebeldia ou adesão ao “eixo do mal”. Ou seja, a integração da América Latina no plano internacional foi, e ainda é sem dúvidas, “trunca”, por ter sido sempre submissa e incompleta, como quase tudo do lado de cá do Equador.


[1] O “consenso de Washington” é, na verdade, não um plano de estabilização das economias, mas de contenção de despesas para permitir que os estados latino-americanos fossem capazes de continuar a transferir recursos para os países centrais: ou melhor, pagar os juros da dívida externa.


* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2008, já estudante de graduação no Bacharelado em Ciências Econômicas da UFBA, logo depois de concluir o Bacharelado em Administração na mesma Universidade, eu escrevia um blog com esse mesmo título, Administração Crítica. Foram muitos textos elaborados com aquele ímpeto do estudante de graduação, de recém formado, com colocações pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).

Em 2010 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal. Em minha opinião, revelam um cuidado teórico pouco refinado (acho que nem tenho ainda), mas já uma vontade enorme de fazer ciência crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, de que podemos querer mais do que reproduzir os saberes mainstream.

Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o escrito, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero —, deixa de pertencer a nós.


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