A ideia de HEUTAGOGIA é uma assim chamada “nova” concepção de educação que, alegadamente, indica uma mudança de sentido no que se compreende como formação. Diferentemente dos paradigmas educacionais associados a instituição Escola (assim mesmo, com “E” maiúsculo), o que se chama de heutagogia coloca o estudante não simplesmente como ator dinâmico, mas único responsável por identificar problemas, listar alternativas e prospectar ou produzir conhecimento. Trata-se de um tipo de educação de si mesmo.
Seriam três os princípios sobre os quais se estrutura um sistema heutagógico: autodidatismo, auto-organização e autodisciplina. Por autodidatismo, se sugere que é o próprio estudante que deve definir os conteúdos que pretende aprender, com base em suas próprias experiências, expectativas e necessidades. Auto-organização, por sua vez, se refere ao fato de que o estudante então estabelece método, materiais e objetivos, sendo único responsável pelo planejamento de sua educação. E o princípio da autodisciplina destaca que, num processo heutagógico, é o próprio estudante que dita ritmo, intensidade e cobrança sobre o processo de aprendizagem.
Os entusiastas da heutagogia, instados à euforia pelas experiências de educação digital no contexto da pandemia de Covid-19, chegam ao limite de profetizar o fim da Escola, a superação do currículo e a extinção da disciplinaridade. Sugerem que, no futuro, todas as pessoas construirão e gerenciarão seus próprios processos de aprendizado com o mínimo de interferência externa, como clientes em um grande mercado de saber. Na minha humilde opinião, é exatamente nesse entusiasmo que reside o grande perigo da novidade.
A heutagogia é o extremo do individualismo. Desde tempos imemoriais, a humanidade existe como uma comunidade animal cuja principal característica é a capacidade de uma geração legar à próxima um rol de saberes necessários para a sobrevivência. Esse processo, resumido não sem um certo grau de imprecisão na concepção de Educação, se fundamenta na demorada formação de pessoas por meio da assimilação de signos relacionais e saberes práticos, teóricos e ideológicos, que permitem o estabelecimento de laços sociais duradouros. Da aculturação e da educação surgem a percepção do outro, de si, a noção de pertencimento. Em última instância, é na Educação lato senso (psicólogos junguianos dirão, no processo de individualização) que a personalidade se forma. Educar a si mesmo é negar isso, é refutar a raiz coletiva do eu.
Me pergunto até que ponto é sintomático que, em uma sociedade que tende ao (i) individualismo e (ii) ditadura da doxa (da opinião, do saber não-sistemático, preconceituoso e ideológico), surja uma ideia de completa auto-direção de saber. O quanto disso está radicado no fato de que, na sociedade contemporânea, da indústria 4.0 (que é apenas um sonho, já que a indústria 1.0 ainda é a forma dominante de produção, no mundo todo), procura-se a todo custo desconectar as pessoas de seus laços coletivos para que, em seu lugar, sejam propostas mercadorias? A heutagogia, nesse sentido, também funciona como uma extremização da empresa-escola, da educação dedicada aos fins de lucro, na medida em que permite a oferta de uma mercadoria ao gosto do cliente.
A boa verdade é que a “heutagogia” é a forma individualizada de um ensino orientado pelo consumo, ditado nas salas dos produtores de conteúdo, que oferecem uma pauta de opções para “escolha livre”, mas tiram da prateleira a crítica, a contestação e o contraditório. É possível se “educar” apenas reforçando e alimentando dogmas e opiniões sem embasamento, porque o cardápio da extrema liberdade sem contato humano já é, em última instância, também a ausência da alteridade e da necessidade de olhar para si mesmo.
Há praticidade, como também há praticidade num produto feito inteiramente por máquina. Mas, a dúvida que paira sempre será: a mão que programa o algoritmo sempre pautará o conteúdo? Quem programa? Para o benefício de quem?
Correndo o risco de ser taxado de ludista, devo dizer que, no limite, a educação de si mesmo é o fim da educação em sí. Não se trata ali do “aprender a aprender” de Paulo Freire, que demanda o outro, o olhar da dúvida e a consideração da história como movimento relacional. O aprendizado mediado por máquina (algoritmo etc.), na minha opinião, encerra tristemente o período histórico no qual as pessoas se relacionavam umas com as outras para constituir a si mesmas. A educação heutagógica é o fim da relação, é a negação da oportunidade do estranhamento de si, na medida em que falta o Outro para a formação dos limites da própria existência.
Se somos seres coletivos, extensões uns dos outros, o extremo individualismo que é representado na concepção de heutagogia pode ser mais um passo em direção o fim da socidade. E, curiosamente, quando o coletivo chega ao fim, o eu deixa de existir.
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