“Não Olhe Para Cima” (Don’t Look Up, EUA, 2021) suscitou reações divididas e alimentou desde epifanias, a teorias conspiratórias de extrema direita. No filme, cientistas descobrem um iminente evento de extinção global e, ao tentar alertar as autoridades e a sociedade, esbarram numa indústria de mídia dominada pelo entretenimento fútil, em lideres políticos talhados no espetáculo e capitalistas gananciosos o suficiente para colocar as vidas de todos em risco e, talvez assim, alcançar mais lucros.
No desenrolar da história, negacionismo, política de botequim, pseudo-ciência e memoráveis momentos da mais insignificante idiossincrasia se misturam para expor as feridas abertas das sociedades contemporâneas. Se antes chocavam a perfídia dos ricos e a violência dos maus (esses os males do capitalismo tradicional), hoje a parvoice e a superficialidade de uma sociedade domesticada pela bazófia são sinthomas de uma coletividade fadada ao fracasso (o legado da assim chamada “cultura das startups”).
A plot capta isso com perfeição. Políticos escolhem a inação diante do perigo coletivo. Jornalistas zombam da ciência, da verdade e da notícia, em nome do pastelão. Gurus de tecnologia, completamente alheios a realidade, deliram sobre futuros e oportunidades que só se mostram viáveis sobre pilhas de corpos, destruição e miséria. E, principalmente, as pessoas vivem anestesiadas, como se espectadores de suas próprias vidas, em um presente contínuo sem passado e sem futuro.
O que parece uma comédia de erros é, na verdade, um drama de realismo cru e verossimilhança chocante. Não apenas decorrente do brilhantismo dos cineastas, mas sobretudo por causa do fato de que vivemos em uma era de declínio cognitivo coletivo, numa sociedade dominada pelo efêmero e pelo inútil. O cômico e o ridículo da plot doém como um golpe bem dado, porque também são a imagem real de nosso tempo. O zeitgeist do mundo pós twitter/tiktok/facebook/instagram é ali bem representado: a celebração da estultícia e a vitória da mentira, dos perversos e do dinheiro.
Ao cabo, chega-se a inevitável conclusão de que esse estado de coisas só pode nos levar a um não-lugar, à morte, a extinção, ao desespero.
(Desculpe, não tenho boas notícias…)
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