Pela erradicação do ensino particular (e pela extinção das empresas-escola)*

Dentre as discussões sobre o tamanho e o papel do Estado na economia, em cujos debates sobre cessão para a iniciativa privada das atividades dantes assumidas pelo Governo em busca do desenvolvimento, por muito tempo ficaram de lado os problemas o perverso processo de privatização da educação.

No imaginário popular brasileiro, subjaz uma ideia de que os ensinos fundamental e médio de instituições particulares tem uma qualidade superior à da educação pública. Isto porque as escolas mantidas pelo poder público foram constante e sistematicamente sucateadas desde a ditadura empresarial-militar, resultando numa situação que na década de 1990 beirava o desespero, enquanto as instituições privadas com fins lucrativos tomavam seu lugar e se revestiam com um manto de (pseudo) excelência. A partir da década de 1990, o mesmo tipo de ataque foi iniciado contra as Universidades públicas, sucateando-as e desprestigiando-as; processo o qual, embora interrompido pelos governos PT 2003-2016, foi retomado com vigor pelo atual ocupante do Palácio do Planalto.

Neste breve texto, não se propõe a perguntar se a educação particular é melhor ou pior que a pública, mas sim se a formação particular é realmente capaz de educar o indivíduo para a sociedade, uma questão que se coloca anterior à primeira. Acredita-se, neste artigo, que não. Para chegar a esta conclusão se argumentará que, como a empresa capitalista visa apenas o lucro e não a formação, o aspecto financeiro sempre terá prioridade sobre o educacional. Além disso, como a escola tende a ser ideologicamente orientada em via única, segundo os interesses da empresa, seu ensino sempre será parcial. Por fim, sugere-se que, como a principal preocupação das empresas é adequar o ensino para o mercado de trabalho, isto debilita a formação de cidadãos autônomos e capazes de reflexão crítica.

1. A educação particular não se compromete a priori com a melhor formação

Quando se pretende saber a identidade de algo, um grupo ou organização, uma das melhores formas de fazê-lo é procurar saber qual o seu objetivo, a razão de sua existência. Não se trata, porém, de meramente apreciar os dizeres “oficiais” repetidos nas declarações de missão e visão das empresas. Sabemos o quanto estas palavras visam transmitir uma expectativa de imagem, não necessariamente a realidade das motivações organizacionais. Quero enfatizar aqui as aspirações concretas, o objetivo de fundo que move a racionalidade das empresas que comercializam educação.

Uma empresa capitalista tem como principal objetivo a valorização do capital.[i] A corporação poderá, momentaneamente, florear seus discursos com termos vazios como “responsabilidade social” ou “comprometimento ambiental”, mas essa homilia pretende apenas atrair os consumidores mais sensíveis para com estes temas. Não importa quão bem aceito, importante ou tradicional é seu produto, não interessa quão bem posicionada, articulada ou poderosa é a empresa, nem tampouco vale de muito se é um bom lugar para se trabalhar, respeitoso e cumpridor das obrigações para com os trabalhadores. Se não cumpre o desiderato de aumentar a riqueza de seus donos, a empresa terá o destino do esquecimento.

Quando estamos a falar de uma organização com função de educar, espera-se que seu comprometimento inicial seja para com a qualidade da formação de seu corpo discente. Normalmente atribui-se esse grau de qualidade a capacidade de uma instituição em transformar, efetivamente, um indivíduo em um ser social (1) conhecedor dos saberes necessários para o exercício de suas funções, (2) ciente de direitos e deveres junto à sociedade, (3) apto para refletir sobre sua práxis de modo a inovar em sua conduta visando adaptar saberes e técnicas a contextos diferentes, bem como desenvolver novas formas de trabalho e representação quando necessário, e (4) capaz de se engajar em processos formativos e aquisição de conhecimento de maneira autônoma, proativa e metodologicamente coerente com os princípios da ciência.

Para alcançar tais objetivos, uma instituição de ensino se vale de três fundamentos: (i) qualidade do corpo docente (formação, experiência, engajamento científico e críticos dos professores); (ii) qualidade da estrutura de ensino e aprendizagem (métodos, técnicas de ensino e avaliação, currículo, estrutura física dos locais onde se dão as intervenções didáticas, biblioteca, laboratórios); (iii) qualidade prévia do corpo discente (disponibilidade e disposição para o estudo, estrutura familiar e material, acesso a etapas pregressas da formação curricular com qualidade). Ainda que se possa argumentar que esse último item muitas vezes é determinante — instituições que atraem bons candidatos normalmente formam bons profissionais, porque os recebe semiprontos, enquanto que instituições menos prestigiadas, que tendem a exercer uma diferença maior na comparação entre a situação e entrada e de saída dos estudantes (e, portanto, são “melhores”), ainda assim entregam profissionais com menor capacidade de inserção no mercado de trabalho —, corpo docente e estrutura se mostram determinantes, sobretudo se o corpo discente chega com defasagem de desenvolvimento.

A questão é que, quando a escola na verdade se mostra ser uma empresa, a formação de seu quadro docente e a qualidade da estrutura ensino estarão sempre em segundo plano. O principal comprometimento da empresa-escola é com a valorização do capital investido. Em nome do apelo dos lucros, os empresários demitirão professores mais bem capacitados e bem formados (isto é, se os contratarem em primeiro lugar) para trazerem especialistas “mais baratos”, montarão e suprirão laboratórios com instrumentos, tecnologias e insumos que cubram apenas o mínimo exigido legalmente, irão relacionar mestres e doutores em seus quadros apenas para conseguir aprovação legal para existir (talvez nunca entrem efetivamente em sala de aula), a carga horária dos cursos também será a mínima exigida pela autoridade legal, entre outras arbitrariedades.

Na empresa-escola sobra para os estudantes o que as contenções de custos e despesas permitirem: (i) a obrigação de transferir suas rendas para os empresários através das mensalidades e (ii) um residual mínimo exigido para sustentar uma imagem funcional da instituição. Óbvio que, se a empresa-escola é uma unidade de valorização, ela não ofertará ao estudante o mesmo valor que este depositou pelo serviço, mas algo muito menor, pois é preciso construir lucro. Uma maior qualidade de ensino só será perseguida se, no momento do posicionamento estratégico, a empresa-escola venha a optar por uma tática de nicho, procurando atrair candidatos com maior grau de desenvolvimento cognitivo (e capazes de pagar por isso). E mesmo nesses casos, ainda subsistem problemas.

2. A instituição particular de ensino não é independente

Uma das falácias mais comuns no mundo da ciência prega a neutralidade axiológica do cientista: a postura científica seria pautada pelo distanciamento emocional, político, ideológico, social e teleológico para com seu objeto de investigação. Contudo, ao ser humano não é permitida a dádiva da isenção (nem parcial, quiçá total): a história de vida, as crenças, os preconceitos, os interesses e os valores irão marcar toda sua atividade e até mesmo a forma como este contempla o mundo que o cerca. Tudo isso faz com que enxergue a realidade partir de lentes que interpretam e personalizam quaisquer informações e dados que lhe caiam à mão.

Não é preciso apelar à filosofia da linguagem para perceber que mesmo a própria elaboração de questões orientadoras de pesquisa esconde, na maioria das vezes, as crenças e preconceitos do pesquisador. Todo o processo científico é construído e sustentado por tais pressupostos, como os que levaram Friedrich von Hayek a concluir a priori em favor do liberalismo econômico (individualista e egoísta) e Karl Marx a lutar pelo socialismo (coletivista e solidário), por exemplo. Esses pressupostos de pesquisa, que são concepções filosóficas da existência que antecedem e permeiam o saber científico — e que, de forma inevitável, o determinam em grande parte—, podemos chamar de ideologia.[ii]

Uma instituição educacional, assim como qualquer outro grupo de seres humanos, será permeada e orientada por ideologia. Cada pesquisador e professor de seus quadros manterão posturas e opiniões próprias sobre a existência, a humanidade, a ciência e (muitas) outras questões filosóficas. Seja consciente ou inconscientemente. Dentro de uma situação normal, a instituição educacional de qualidade permitiria espaço para múltiplas visões e ideologias, que seriam apresentadas para o aluno de forma que este escolhesse qual a melhor para si, o que enriqueceria sua formação.

Contudo, uma empresa-escola tem um pressuposto básico que a sustenta: a lógica utilitarista do capital. Assim, normalmente os profissionais contratados (desde professores até o pessoal de apoio) serão escolhidos entre aqueles que “vestem a camisa” da empresa, ou seja, que concordem com os valores e perspectivas dos proprietários, diretores e coordenadores. Isso a torna uma instituição de filosofia única, o que a fará moldar seus alunos privilegiando aquele viés em específico. São dois os mecanismos: (1) a inevitável idolatria do sistema social que permite a existência da instituição educativa particular enquanto empresa lucrativa, o modo de produção capitalista; e (2) a exclusão de professores e profissionais cujos posicionamentos sejam contrários ou críticos ao pensamento dominante na instituição.

Qualquer processo de ensino e aprendizagem que sobreviva à ideologia da empresa apresentará marcas indeléveis: (i) toma como pressuposto, de forma acrítica, o modelo de organização social imposto pela classe dominante, que impede o discente de se posicionar contra os padrões de pensamento e ação ali reproduzidos; (ii) não prepara o indivíduo para algo diferente, nem para a reformulação do modelo social, tampouco para enxergar suas contradições e problemas, bem como soluções ou superação; (iii) torna o estudante um autômato sem vontade própria por conta da metástase da capacidade de escolha e imposição de um pensamento de via única.

Existem, porém, fundações privadas capitalistas que se cercam de (alguns) pensadores críticos para, assim, enriquecer a formação de seus clientes. No entanto, isso não permite que escapem de uma contradição ainda mais profunda.

3. A empresa-escola não prepara a vida, mas para o mercado de trabalho

Sem dúvida o mercado de trabalho é uma instituição que amedronta. As esperanças de uma existência digna são geridas por este ente “impessoal”, que detém poderes quase divinos (e caprichos não tão inefáveis assim) sobre a distribuição do conforto e da miséria. É inevitável que o preparo para inserção nas atividades produtivas da sociedade precisa ser pauta do processo educacional. Mas, a formação do indivíduo deve realmente limitar-se a moldá-lo para uso como recurso de produção?

A administração do recurso humano na empresa (como sempre foi chamada até o insosso e cínico movimento pela “responsabilidade social da empresa” passar a denominá-la como “gestão de pessoas”) exige do funcionário alguns pré-requisitos essenciais: (1) obediência cega para com os interesses da firma; (2) capacidade de se adequar às mais absurdas, contraditórias e humilhantes condições de trabalho; (3) desejo de contribuir com muito mais do que recebe em troca; (4) hiper-competitividade, comportamento de selvageria irracional aceitando a “lei da selva” como pressuposto existencial; (5) conhecimentos exclusivamente direcionados para produção de mais-valor; (6) uma postura utilitarista, individualista e materialista de mundo, de preferência complemente livre de consciência social ou empatia.

Ou seja, a empresa espera que seu empregado (contemporaneamente citado, de forma ainda mais cínica, através do termo “colaborador”) abdique da capacidade crítica, da liberdade, do fruto de seu trabalho, da aptidão de comportar-se racional e emocionalmente, bem como não desenvolva qualquer conhecimento que não seja imediatamente aplicado para gerar ganhos para a empresa.

Uma formação que prepara para o mercado, mas também para a vida, tentará fazer com que o indivíduo adquira instrumentos intelectuais e cognitivos para lidar com tais situações, propiciando ao homem a capacidade de criticar racionalmente os contras sensos da produção mercantil e utilitaristas, mostrando-lhes outros saberes e perspectivas. Contudo, se a instituição de ensino é particular, uma empresa-escola, esta será consequentemente comprometida com a reprodução do capitalismo. Assim, seu processo educativo estará exclusivamente voltado para a finalidade de moldar o indivíduo de acordo com o que o mercado espera, considerando que aqueles “valores” são (ou deveriam ser) universais e necessários. O estudante, absorto por uma educação exclusivamente alinhada com o mercado, também será estranho a outros conhecimentos que não dizem respeito ao mercado. Mais ou menos como acontece na educação brasileira com a filosofia, a lógica, a sociologia ou a arte.

Os temas relegados à margem do processo educacional oferecido pelas empresas-escola, por serem não-utilitários, têm um papel importante na formação do indivíduo crítico e autônomo. A apreciação da literatura clássica, o conhecimento das muitas vertentes filosóficas, a apreciação da arte ou a noção de como se constroem os argumentos racionais e as falácias lógicas são instrumentos que proporcionam ao indivíduo a capacidade de evitar o engano, compreender o mundo e seu papel no mercado e na sociedade.

Prescindir destes conhecimentos no processo formativo, privilegiando apenas métodos e técnicas de trabalho (superficial e impotente “saber fazer” que, na prática, é na verdade um “saber repetir sem questionar”) é o mesmo que adestrar. Fazem com animais e pessoas, para que repitam a comandos e ajam de maneira dócil, tão somente.

Caminhando para o fim…

Então: (1) a empresa-escola não visa formar o indivíduo, mas valorizar o capital, relegando ao estudante importância secundária; (2) a instituição de ensino particular é orientada por uma ideologia única, privando o estudante do contato com outras percepções sobre o mundo; (3) o ensino orientado pelo mercado, que é pressuposto da escola de propriedade privada, não trata de temas imprescindíveis para a construção intelectual do indivíduo, por que deseja adestrar pets, não formar pessoas.

Talvez possa-se inferir de tudo isso que ao indivíduo que emerge da educação particular, apesar de mais competitivo e agressivo profissionalmente, faltam-lhe as competências essenciais para torná-lo um cidadão: concepção crítica mundo em que vive; compreensão dos processos de relação social que o cercam; intimidade com a história de sua raça. A educação particular prepara um ser não-humano, uma engrenagem que pretende se encaixar na máquina do modo de produção. Fora da máquina, não tem fundamento e preparo para existir e, por isso, é ao mesmo tempo tão submisso e tão infeliz. Não estão sendo formados cidadãos conscientes de seu papel social e sim mecanismos a serem utilizados nas empresas para aumentar os seus lucros.

Se óbvias são as vantagens da existência de um ensino laico, parecem-nos agora evidentes os males de uma educação que segue a religião do capital. A formação dos cidadãos, dos indivíduos que constroem a sociedade através de suas relações, não deve ser entregue a instituições que não se propõem a fazê-la de forma completa e responsável. A instituição de ensino particular, a empresa-escola, sem dúvida é proveitosa no sentido materialista utilitarista da valorização de capital, porém não é eficaz na execução do principal papel da educação: o de libertar o homem dos grilhões da ignorância e da alienação.

Por conta de tudo isto, a opinião do autor deste artigo é em favor da erradicação do ensino particular e conseqüente extinção da empresa-escola. Será possível tal façanha sem uma completa ruptura da estrutura de socialização capitalista? Somente o tempo, e o engajamento social, poderão responder.


[i] Que não se confunda “valorização do capital” com “lucro”. Enquanto que o lucro é a diferença entre a receita e o total dos custos e despesas dum período de tempo, a valorização do capital é um artifício dinâmico, e não limitado temporalmente. É um ciclo através do qual o capital-dinheiro (D) aumenta seu poder de troca, ou mesmo seu poder político, tornando-se maior (D’) — seja através da mais-valia, fechando um ciclo completo de valorização DMD’, seja através da comercialização da moeda em estágios de financeirização do capital onde este ciclo se encurta para DD’.

[ii] Existem muitos diferentes conceitos de ideologia, este é apenas um. Ver: Zizek, S. Um mapa da ideologia. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto.


* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2004, enquanto ainda estudante de graduação no Bacharelado em Administração UFBA, eu escrevia um blog com esse mesmo título, Administração Crítica. Foram muitos textos escritos com aquele ímpeto do estudante de graduação (e, mais adiante, do recém formado), colocações muitas vezes pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).

Em 2008 encerrei o blog. Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal revelando, se não um cuidado teórico refinado (acho que nem tenho ainda), já uma vontade enorme de fazer ciência com “pegada” crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, que podemos querer mais do que reproduzir os saberes da opressão.

Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões teóricas e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o texto, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero — deixa de pertencer a nós. Inclusive, foi elaborado antes do novo acordo da língua portuguesa. Nem isto foi revisado.


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