A Guerra Híbrida na América Latina: notas de um observador

No início dos anos 2000, em muitos países da América do Sul as populações empobrecidas por duas décadas de neoliberalismo e crises levaram ao poder partidos e políticos que se opunham à guinada neoliberal. Como demonstra Emir Sader (2010), duas eram as características em comum desses governos — que no auge do entusiasmo de então foram chamados de pós-neoliberais, embora nunca tenham chegado a reverter a gestão macroeconômica monetarista: (i) se posicionavam à esquerda no espectro político de suas nações; (ii) se opuseram à ingerência dos Estados Unidos da (Norte) América na região.

Sem romper diretamente com seu principal parceiro comercial, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela, entre outros, se articularam para tentar construir para si formas de inserção internacional alternativas aos termos do Consenso de Washington imposto pelos EUA. Os esforços para implantação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foram paralisados, criou-se uma rede de relações e cooperação Sul-Sul, instâncias internacionais de diálogo como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), iniciativas para a promoção da integração regional que transcendiam a mera parceria comercial como a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), e muitas outras ações.

Porém, passada uma década, começou a se observar nesses países uma conjunção de fatores políticos e econômicos que, ao cabo de poucos anos, viria a desmantelar grande parte daqueles esforços. O primeiro passo se deu com o posicionamento político de empresas de mídia e comunicação, quando jornais, TVs portais de internet, rádios e outros veículos — que, na América Latina, são controlados por oligopólios concentrados — se empenharam diuturnamente na oposição muitas vezes beligerante contra aqueles governos.

Viu-se ainda nesses países a formação de movimentos sociais alegadamente “espontâneos” de direita contra os governos de esquerda, com o emprego de jovens vozes, e a produção de peças de opinião de vídeo e texto com clara inspiração neoliberal, as quais eram preparadas com um padrão estético evidentemente muito custoso e bem planejado, denotando a existência de amplo financiamento de origem incerta, bem como a assistência de profissionais de marketing cujos honorários não poderiam ser cobertos pela doação de uns poucos cidadãos.

Ainda houve a ascensão de figuras públicas autoproclamadas como antipolíticas, sobretudo empresários que, mesmo com laços perceptíveis junto a partidos de direita, tentavam se apropriar da imagem de outsiders para assim assumir a liderança da oposição. Da mesma forma, multiplicaram-se denúncias judiciais, muitas com base em factoides, alegando corrupção de diversos membros daqueles governos, o que, em muitos casos, seguiu julgamentos apressados e condenações carentes de provas.

Então formou-se uma profusão de manifestações de rua, protestos diversos de inspiração à direita, num primeiro momento notadamente protagonizadas pelas elites e classes médias em busca de uma alegada moralização da política. Esses processos correram em paralelo com uma invasão de peças publicitárias sem autor nas redes sociais da internet, cujo objetivo eram disseminar boatos e falsas notícias para denegrir a imagem pública de políticos (seus familiares, amigos e aliados) daqueles governos.

Esse contexto, associado à paralisação de investimentos por parte de grandes capitalistas locais e transnacionais — greves dirigentes, ou lockdown —, criou artificialmente naqueles países um cenário de crise econômica, com desemprego, inflação e até mesmo desabastecimento, o qual passou a servir de combustível para a oposição.

Como resultado, tentativas de golpes de Estado (constitucionalmente disfarçados ou abertamente violentos) foram articulados tanto no Paraguay, como no Brasil, Honduras, Equador, Bolívia e Venezuela. Em quatro países, Bolívia, Brasil, Honduras e Paraguay viram seus governos “pós-neoliberais” serem retirados à força do poder, substituídos por políticos de direta e declaradamente alinhados aos interesses dos EUA, assim como empenhados em retomar o projeto neoliberal.

Na Argentina, após anos de impasse se conseguiu eleger um político de orientação neoliberal para cadeira de Presidente em 2015; o mesmo no Uruguay e Chile. Na Venezuela, a situação de instabilidade chegou a escalar para confrontos de rua e formação de milícias armadas por parte da elite empresarial, visando confrontar um governo cada vez mais acuado interna e externamente.

É interessante notar como a sequência de eventos foi parecida a, por exemplo, o que aconteceu no Brasil da ditadura empresarial-militar de 1964, no Chile da ditadura Pinochet-empresários de 1973, na Nicarágua, e nos muitos países nos quais os EUA apoiou regimes autoritários antidemocráticos para ali alcançar seus interesses. Muito dificilmente se trata de uma coincidência, dado os novos rumos da assim chamada “diplomacia transformacional” anunciada em meados da primeira década do século XXI ainda sob o secretariado de Condoleezza Rice.

Porém, iniciada a segunda década do século XXI, as coisas parecem estar mudando (novamente) no subcontinente. No México, elegeu-se presidente o líder operário Andrés Manuel Lópes Obrador (AMLO). Na Argentina, após um período turbulento, Aberto Fernández chegou ao poder, também pela via das urnas, trazendo consigo Cristina Kirchner como vice. Na Bolívia, a vitória de Luis Arce, ligado ao antigo presidente Evo Morales, trouxe novamente a esquerda ao poder. No Equador, Andrés Arauz, apoiado por Rafael Correa, pode ser eleito presidente em 2021. E Nicolas Maduro, contra todos os prognósticos, se segura no comando da Venezuela.

Embora no Brasil os ventos apontem para o outro extremo do espectro político, a esperanças se renovam na América Latina. Passada a pandemia de Covid-19, sob um presidente Norte-Americano que promete respeitar a autodeterminação dos povos, talvez o tal “pós-neoliberalismo” possa vir a, finalmente, aparecer de fato.

Referências

AYERBE, Luiz F. (2009). Diplomacia transformacional y poder inteligente. Continuidades y cambios en las agendas latinoamericanas de George W. Bush y Barack Obama. Pensamento Propio, v. 14, n. 2, p. 87-116, jul./dec.

BIROLI, Flávia. (2017). A mídia, a crise e o golpe. Revista Dialética, v. 8, p. 30-34, mar. Disponível em: <http://revistadialetica.com.br/wp-content/uploads/2017/03/003-a-midia-a-crise-o-golpe.pdf&gt;. Acesso em: 29 jun. 2017.

PENTEADO, Claudio L. de C.; LERNER, Celina. (2015). A direita se mobiliza: estudo do uso das redes sociais de internet por grupos de direita no Brasil. In: Pensacom Brasil, IIª, 2015, São Bernardo do Campo, SP. Anais… Disponível em: <http://portalintercom.org.br/anais/pensacom 2015/resumos/025.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2017.

SADER, Emir (Org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013.

SECCO, Lincoln. (2016). El golpe de abril de 2016. Revista Política Latinoamericana, v. 2, n. 2, jul./dez. Disponível em: <http://www.politicalatinoamericana.org/revista/index.php/RPL/article/view/39/24&gt;. Acesso em: 28 jul. 2017.

SERBIN, Andrés; MARTÍNEZ, Laneydi; RAMANZINI Jr., Haroldo. (2012). Introducción. In: SERBIN, Andrés; MARTÍNEZ, Laneydi; RAMANZINI Jr., Haroldo. (Org.) Anuario de la Integración Regional de América Latina y el Gran Caribe 2012. Buenos Aires, Arg.: Clacso. p. 7-18.

TIBLE, Jean. (2016). Golpe à brasileira. Revista Política Latinoamericana, v. 2, n. 2, jul./dez. Disponível em: <http://www.politicalatinoamericana.org/revista/index.php/RPL/article/view /38/23>. Acesso em: 28 jul. 2017.



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