Se existe uma categoria geral com a qual se pode caracterizar qualquer grupamento humano, é a existência de mitologias que permeiam as relações e instituições sociais. Quase a totalidade das, se não todas as, sociedades das quais se guardam registros estavam comprometidas com soluções míticas para a realidade que as cercavam.[1] A sociedade ocidental burguesa não foge a esta regra com suas crenças irrealistas, como a herança do mito da razão moderna, ou a crença religiosa no mercado como melhor forma de alocar de recursos. Sem mencionar os arcaísmos conservadores que sobrevivem no ninho de ratos de crenças retrógradas das assim chamadas grandes religiões abraâmicas, heranças d’alguns dos momentos menos altaneiros da humanidade.
Entre as mais vulgares construções míticas da contemporaneidade, está uma exagerada crença na faculdade empreendedora (o verbo e o substantivo) como solução para os problemas de desenvolvimento das economias capitalistas periféricas. O empreendedorismo compõe a lista de curandeirismos sócio-econômicos, repleta de fórmulas mágicas que se propõem a reformar as instituições nacionais, como que tábuas da salvação para levar-nos da agricultura pré-moderna às salas de decisões estratégicas globais no espaço temporal de um suspiro histórico.[2]
Porém, a despeito das opiniões inflamadas e ideologicamente orientadas, a faculdade empreendedora como solução para o subdesenvolvimento, se analisada a fundo em suas origens e pressupostos, revela-se um impressionante composto de charlatanismo, crença infantil e ignorância.
Aqueles que afirmam o empreendedorismo como solução para, por exemplo, um país como o Brasil, o fazem baseados em pressupostos que devem ser considerados: (1) o empreender criaria novas firmas, que, sendo inovadoras, teriam maiores possibilidades de competir; (2) a criação de muitas firmas pequenas proporciona a concorrência, que levaria às conseqüências e benesses sociais supostas por economistas neoclássicos como León Wálras e Alfred Marshall;[3] (3) o empreendedorismo traria inovações técnicas e tecnológicas que se disseminariam pela economia, aumentando a produtividade e a eficiência do sistema econômico como um todo, assim como bem-estar material da coletividade.
I
Em primeiro lugar, ao criar novas empresas, não se tem a certeza de estas serão inovadoras a priori. Esta concepção provém originalmente do corpo conceitual elaborado pelo economista austríaco Josef Alois Schumpeter, herdeiro da Escola Austríaca e preceptor em Havard.
Para Schumpeter, o elemento que movimenta a dinâmica capitalista é a inovação. Por meio da inovação, o modo de produção conseguiria manter-se crescendo, pois as práticas e tecnologias estabelecidas seriam sempre contestadas por novas práticas e tecnologias mais eficientes. O jovem Schumpeter enxergava nas empresas pequenas, recém surgidas da ganância de empreendedores, a chave para inovação. Tais startups não apresentariam as estruturas engessadas das grandes firmas e, por sua fragilidade econômica, seriam obrigadas a inovar se desejassem competir contra as grandes corporações e seus ganhos de escala e escopo acumulados. Isto levou historiadores econômicos a concluir que as inovações técnicas e tecnológicas poderiam explicar as mudanças institucionais, organizacionais e políticas ao logo da história do mundo capitalista.[4]
Todavia, ao considerar a inovação tecnológica como principal agente de sustentação da dinâmica capitalista, Schumpeter talvez tome a conseqüência pela causa. Como demonstra Eric Hobsbawn em A Era das Revoluções, as inovações tecnológicas são posteriores às inovações sociais e institucionais que deram ao capitalismo sua dinâmica: o tear mecânico só viria a ser inventado alguns anos após a Inglaterra conhecer a emersão do trabalho assalariado, a qual efetivamente inaugurou o modo de produção capitalista; a petroquímica acompanhou a demanda por novos compostos, não o contrário; assim como, a necessidade do estabelecimento de uma rede de comunicação descentralizada e capaz de operar sem uma coordenação centra deu o ímpeto inicial para o surgimento da internet.
Dessa foma, creditar à capacidade inovadora das pequenas empreendedoras o ímpeto revolucionário capitalista em aspectos como produtividade e eficiência das economias é um tour de force. Inclusive, a história recente aponta que o surgimento de firmas inovadoras foi precedido por intensos investimentos governamentais em produção de tecnologia militar e em infra-estrutura produtiva, como nos EUA militarista da guerra-fria. Em outros termos, é necessidade e intencionalidade que, em primeiro lugar, demanda a inovação, a qual surge como resposta, reação, não como start. O empreendedorismo seria apenas uma conseqüência da existência de inovações orquestradas por um administrador do modo de produção, e não o contrário.
Além disto, o próprio Schumpeter, em sua produção intelectual mais madura — mais especificamente em Capitalismo, Socialismo e Democracia —, irá se opor à parte do que afirmara sobre a predominância da pequena firma empreendedora no processo de inovação. Segundo o célebre economista, as grandes firmas poderiam se impor como maior intenção e capacidade inovadora devido à sua extensa disponibilidade de recursos, redes de contato, bem como fôlego para sustentar um fluxo contínuo de inversões de capital em pesquisa e desenvolvimento sem retorno a curto prazo.
Em minha opinião, esses dois dados contestam a crença na capacidade inovadora do empreendedorismo da firma individual, bem como a crença de que o empreender promove o aumento da produtividade e eficiência de modo geral. Em verdade, o motor da inovação é a capacidade de investimento em pesquisa, de um lado pelo Estado, de outro lado pela grande corporação capitalista.
II
Sempre que se trata de empreendedorismo, ouve-se que a criação de novas empresas ajuda a incrementar a concorrência, tornando o mercado mais competitivo e aproximando-o das conseqüências da teoria econômica irrealista neoclássica. O que se percebe historicamente é que, a despeito do grau de empreendedorismo, cada mercado comporta um número de competidores mais ou menos estável, ou ao menos limitado pela disponibilidade de recursos e demanda. Logo, à medida que novos competidores entram, outros inevitavelmente são forçados para fora, pois que instados a partilhar um recurso escasso.
A tendência aponta para o fato de que empresas estabelecidas, com curvas de experiência consolidadas, tenham melhores resultados em guerras concorrenciais contra novas organizações.
Além disto, há o fato de que na maioria dos mercados a pulverização de ofertantes é irreal. Em verdade, contempla-se uma maior probabilidade de concentrações de poder econômico através de fusões e aquisições (ou deslocamentos simples de competidores) do que realmente uma maior concorrência. De fato, o deslocamento, a concentração e a centralização de capital são a regra, e não a exceção, nos meio capitalistas.
Assim, o empreendedorismo per si talvez seja incapaz de ultrapassar as barreiras econômico-institucionais dos mercados, que, por conta de seu dinamismo concorrencial, tornam-se mais ou menos determinados em termos de quantidade de agentes competidores. A existência de barreiras à entrada em mercados estabelecidos, bem como a competição esgarçada em mercados novos, privilegia os grandes e pune os menores.
O que nos parece é que a variável que se impõe na avaliação da possibilidade de mudança de um mercado não é a capacidade empreendedora de uma sociedade ou economia, mas o grau de contestação do mercado em questão.[5] Enfim, além das previsões neoclássicas se apresentarem como duvidosas e irrealistas, o empreendedorismo não pode promover a concorrência, pois é o mercado que determina o nível concorrencial das firmas, e não o contrário.[6]
III
Vimos que o empreendedor não necessariamente é o único, nem tampouco o mais capaz, agente inovador numa economia capitalista. Não é detentor da exclusividade do poder de inovar e, tampouco, talvez a inovação não seja o fator de mudanças da dinâmica capitalista. Também se sugeriu que o empreendedorismo não necessariamente produz uma maior ou mais capaz situação de concorrência, pois a competitividade de um mercado parece ser construída pelas condições materiais à disposição, não no âmbito da decisão individual da firma.
Já que crença no empreendedorismo como solução para os problemas nacionais não se sustenta em suas bases, pois inevitavelmente não é capaz de trazer os benefícios que se propõe, qual o verdadeiro papel do empreender? E ainda, por que, apesar destas evidentes contestações em relação à capacidade de mudança social do empreendedorismo, ainda existem inteligentes profissionais que se propõem a defendê-lo enquanto solução econômica para países com o Brasil?
Qualquer afirmação ou especulação sobre uma possível resposta para estas questões seria no mínimo arbitrária. Ainda que se recorra à concepção de ideologia para fazê-lo, é necessária uma criteriosa observação da realidade para elaborar uma construção acerca dos processos ideológicos da defesa da capacidade empreendedora. Mas há algo que fica evidente, a característica mítica do pensamento empreendedorista, que se defende como um religioso defende sua divindade como única.
Longe de ser uma proposição racionalista como se afirma, a crença na capacidade empreendedora talvez seja uma concessão ao irracionalismo e à vulgaridade. Em nossa opinião, trata-se de um mito que nos esconde a realidade das relações de poder no nível intraorganizacional. Como tal, inevitavelmente pode nos levar a avaliar incorretamente a realidade e, por isso, deve ser abandonado para se poder entender a real natureza dos problemas econômicos num país como o Brasil e, finalmente, se propor soluções reais e efetivas para além de um mero conto de fadas.
[1] Podemos citar as estórias pré-cristãs europeias que se condensavam em proto-religiões panteísta-naturalistas; os mitos de criação judaicos cristãos; a mítica totêmica dos povos naturais da Oceania; as mitologias diversas e ricas dos povos das américas antes das invasões europeias; ou mesmo a mitologia em torno da noção contemporânea de desenvolvimento econômico e social.
[2] Um suspiro histórico é um referencial temporal ínfimo, no qual parecem ocorrer transformações inimagináveis para aqueles que o vivem, mas que, quando olhado em perspectiva, apenas confirmam tendências preanunciadas e não necessariamente inovadoras, tal qual, por exemplo, essa novidade avassaladora, a tal globalização.
[3] As principais conseqüências decorrentes da existência de mercados competitivos, anunciadas pelos profetas pensadores neoclássicos se fundamentariam em premissas como: (1) concorrência privilegia a eficiência e a meritocracia racional; (2) o lucro econômico das empresas tenderia a zero no longo prazo (conhecido vulgarmente por EVA, por contra da improbidade intelectual de consultores, que “patentearam” comercialmente o conceito de lucro econômico de Marshall com um outro nome); (3) haveria um equilíbrio entre quantidades ofertadas e demandadas, atingindo o máximo bem-estar material possível; (4) inserções externas (i.e. o Estado) ao mercado prejudicariam o equilíbrio; entre outras.
[4] David Landes é um destes historiadores. Em seu livro clássico, O Prometeu Desacorrentado, leva-nos a acreditar que inovação tecnológica seria o verdadeiro motor das revoluções sociais da modernidade e pós-modernidade, responsáveis pelo surgimento do capitalismo como nós o conhecemos hodiernamente.
[5] O grau de contestação é a capacidade de uma empresa externa fazer frente a um concorrente estabelecido, que domina tanto a distribuição como o fornecimento através de relações de poder inter-organizacionais, além de dominar as técnicas produtivas e deter os ganhos de escala.
[6] E o mercado não é um ente impessoal, como a mítica “mão invisível” smithiana, mas sim o resultado das correlações de poder de mercado das firmas estabelecidas. Se considerarmos que a imensa maioria dos mercados apresenta níveis de concentração que tornam impossível sua classificação como concorrência perfeita, fica evidente a incapacidade do empreendedorismo, per si, ser um elemento contestador — visto que, anteriormente, descobrimos que o empreender não é necessariamente inovador como se crê a priori de forma vulgar.
Também é preciso observar que um mercado não é a soma simples das decisões individuais das firmas, como tentam fazer crer os vulgares manuais de microeconomia em suas lógicas reducionistas e cartesianas. Se assim fosse, bastaria que a firma administrasse fechada dentro de si mesma, em busca de eficiência máxima para chegar ao sucesso – experiência que, sem embargo, levaria uma empresa ao completo fracasso em determinados ambientes.
* Esse texto é uma repostagem. Nos idos de 2004, enquanto ainda estudante de graduação no Bacharelado em Administração UFBA, eu escrevia um blog com esse mesmo título, Administração Crítica. Foram muitos textos escritos com aquele ímpeto do recém formado, colocações muitas vezes pouco cuidadosas e até cheias de uma inocência teórica que, com o passar dos anos, foi se diluindo (para o bem e para o mal).
Mas, guardo um carinho especial por alguns daqueles escritos, que estão como documentos de minha história pessoal revelando, se não um cuidado teórico refinado (acho que nem tenho ainda), já uma vontade enorme de fazer ciência com “pegada” crítica em administração. Por isso faço essa repostagem, como um exemplo de que é possível pensar criticamente na graduação, que podemos querer mais do que reproduzir os saberes da opressão.
Quis muito revisar e melhorar o texto. Deixei como estava, com seus erros, imprecisões teóricas e frases de efeito desnecessárias. Acho que, como um relato de vida, bem como para fazer justiça a alguém que eu talvez já não seja mais, posso dizer que o texto, quando publicado — mesmo neste tipo de veículo tão efêmero — deixa de pertencer a nós. Inclusive, foi elaborado antes do novo acordo da língua portuguesa. Nem isto foi revisado.
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