Desafios da educação no Brasil (ou, dos sonhos que poderiam ser e não são)

“A educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo.”

Paulo Freire

Essa citação de Paulo Freire é talvez uma das mais simples e completas expressões do poder e dos limites da educação. Nenhuma partícula da coletividade pode acreditar que, em si, é capaz de transformar concretamente a realidade. Economia, direito, educação, administração, entre outras, são apenas expressões menores do todo que é a cultura humana.

Em si, assim desarticuladas, nenhuma delas têm efetivamente poder. Mas as pessoas, esses seres complexos que são manifestação concreta do conjunto de uma coletividade, podem sim transformar o mundo. E o transformarão a partir do acesso que tiverem à particular composição de conhecimentos que são providos por esses campos de saber

Assim, cada uma tem um papel decisivo na composição do todo que é o homem e a sua inserção na coletividade. A economia oferece os entendimentos acerca da disponibilidade, distribuição e estruturação dos usos de recursos escassos; a administração é a ciência que, no limite entre as intenções e as possibilidades sociais, escolhe os caminhos produtivo-distributivos a partir de um dado conjunto de interesses; o direto, limitado pelas leis constituídas no plano dos interesses e do poder, se presta a interpretar e reger os deveres e direitos dos indivíduos, e assim sucessivamente.

A educação lato sensu, enquanto prática humana, tem o papel ideal de compor as personalidades e preparar os indivíduos para a coletividade por meio do trabalho e da cidadania. Trata-se de uma práxis da qual todas as outras dependem e deveriam ser vassalas. Em cada diferente arranjo coletivo, para cada distinto modo de produção, as condições de trabalho e maneiras de exercício da cidadania serão próprias.

De todo modo, é a educação o instrumento social que molda as atitudes e o agir-no-mundo das pessoas nos diferentes contextos históricos. Cada um será tanto mais crítico, ou passivo, quanto a sua formação permitir. Será tanto mais solidário, ou individualista, quanto for possível dado a estrutura de valores à qual for exposto. Ainda que os efeitos das transformações educacionais estejam no longo prazo, à educação está outorgado o papel de compor o que a coletividade acredita ser correto, bom e ético.

Então, ao olhar para os sentidos da educação no Brasil de hoje, para as escolhas, comportamentos e ideias disseminadas pelas pessoas, pergunto-me: é este o tipo de atitude e agir-no-mundo que eu espero da sociedade? Da minha coletividade?

Desde o último quartel do século 20 a educação brasileira vem passando por uma re-significação de valores — acompanhando um projeto de nação — que, a partir do meu ponto de vista, tem contribuído para a composição de uma coletividade não necessariamente passiva, mas sobretudo desesperançada e alheia a mecanismos de engajamento coletivos eficiente. Assim, formou-se uma nação subalterna, tanto no âmbito da subsunção interna do trabalho ao capital, como no plano da divisão internacional do trabalho um país dependente.

Do ponto de vista do ensino fundamental, a reforma orquestrada pelo governo militar que culminou na mercantilização do ensino de base no Brasil, construiu uma escola particular quantitativista que privilegia um currículo criticamente apático. Essa escola está focada em matérias cuja aplicabilidade prática é duvidosa — como física, química, biologia e mesmo o português que é ensinado —, e voltada exclusivamente para auxiliar os filhos da elite a ingressarem na universidade pública através do vestibular e mais recentemente do ENEM. Seus parâmetros não são o da formação do caráter e o da composição de um indivíduo socialmente ativo. Busca-se apenas o resultado classificatório em uma prova que tradicional e conceitualmente é limitada, programando autômatos para um resultado mecânico e esquecendo da “vida após o [durante e à parte do] teste”. A consequência é uma escola que, por conta da sua ausência de referência de valores, tenta imitar o modelo segregador da high school norte-americana.

Olhar o ensino superior revela uma situação ainda mais caótica. Pois, se este foi mantido relativamente durante o governo militar, os governos subsequentes foram particularmente nocivos. FHC orquestrou um desmonte da universidade pública que, em 8 anos, destruiu toda a autonomia — e mesmo em alguns casos, a dignidade — de um sistema que, apesar das falhas históricas, tinha sido bem montado. Seu objetivo era simples, sucatear a universidade pública para fomentar o avanço do ensino superior particular capitalista. O boom veio. Faculdades particulares se multiplicaram com sua qualidade duvidosa e sua avidez pelos lucros. Então o governo mudou, e promessas de investimento para a universidade pública foram cumpridas… por um preço. A universidade pública seria revalorizada se se tornasse uma escola técnica, se deixasse de lado o pensar para se voltar para o capital no intuito de o instrumentalizar. Findo esse ciclo intermediário, retoma-se agora o desmonte.

Na verdade, apesar das aparentes diferenças, todos esses governos representam fases distintas do mesmo processo: a desconstrução da capacidade de pensar da universidade [sociedade] brasileira. À busca de uma inserção subalterna na divisão internacional do trabalho, o Brasil desistiu de produzir conhecimento para produzir técnicos. As universidades públicas foram inundadas de recursos para pegar os estudantes [de]formados no já limitado ensino fundamental e transformá-los em meras engrenagens à serviço do capital. As particulares, diante da súbita concorrência [des]qualificada das universidades públicas, estão a passar por um processo de concentração de capital cuja perversidade foi intensificada pela abertura do setor de serviços ao capital internacional. Grandes grupos estrangeiros de investimento compram universidades apenas para dali extrair dinheiro, e os cursos vão se tornando cardápios de diplomas baseados em uma relação clientelista.

Não satisfeitos, após o golpe de 2016 o governo federal trancou investimentos, contingenciou recursos, paralisou o ampliação de vagas e, sob o atual mandatário, pretende desde a privatização até a destruição por inanição. Até mesmo se pretende transformar escolas em quartéis, enquanto se expulsa delas o pensamento crítico cinicamente taxado como “político”. Não vi, em minha breve vida, uma ameaça tão grande e palpável como esta contra o conhecimento, o saber, a verdade e a escola.

É infantil dizer que o Brasil precisa de uma reforma educacional. Nosso país passou por uma reforma. A educação se tornou um negócio, e este negócio parte do pressuposto que a coletividade brasileira tem que ser subalterna, não precisa pensar, não tem (ou não deve ter) capacidade para decidir os rumos de seu próprio desenvolvimento. Essa longa reforma iniciada no governo militar, relativamente adiada por um Partido de “Trabalhadores” e levada às últimas consequências por esse neo-proto-quasi-fascismo d’agora, representa um sério golpe em qualquer tentativa de autonomia que a nação brasileira poderia desejar.

Quebraram-nos no desejo pela autonomia. Foram mais cruéis do que a crueldade. Não apenas querem proibiar a reflexão, mas estão a convencer a todos que pensar é errado. Estão a levar nossos jovens a pensar que deve-se “aproveitar o dia” (carpe diem), para que estes não pensem o futuro, não planejem, sejam sempre como os povos sem história, que vivem num presente contínuo sem passado e sem perspectivas de futuro. Tentam nos confinar à condição de animais.

E o fazem através daquilo que poderia ser nossa esperança de emancipação. A educação, desvalorizam-na, ridicularizam-na, transformam em piada o professor, em escárnio a escola e assim assassinam o nosso futuro. Estão transformando nosso mundo em nada a medida que nos transformam em nada, eliminando quaisquer possibilidades de reação. Chegamos ao extremo de ter que defender o que, até outro dia, era duramente criticado por nós mesmos dada suas falhas estruturais. Talvez nem aquilo resista ao final desse ciclo.

Enfim, hoje não precisamos de uma reforma educacional. Precisamos de uma revolução… inclusive educacional.


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