No dia 25 de janeiro de 2021 completaram-se 2 anos desde que uma barragem de dejetos de mineração se rompeu nas imediações da cidade de Brumadinho, MG, causando um desastre ecológico e social. Poucos anos antes, em novembro de 2015, um acidente semelhante destruiu o Rio Doce, também em Minas Gerais. Em ambos os casos a empresa Vale S.A. esteve envolvida, como co-controladora da Samarco Mineração S.A. — então gestora da barragem em Mariana —, bem como diretamente responsável pela barragem de Brumadinho.
Muito já foi dito, analisado e debatido sobre esses casos e, é notável o quanto as principais críticas focalizam as singularidades (revoltantes) dos acontecimentos, mas conferem menor ênfase às suas normalidades.
Os engenheiros encarregados pela inspeção governamental foram quase imediatamente crucificados. A modalidade de engenharia empregada na construção de barragens daquele tipo foi, com justiça, condenada, embora não abandonada. As medidas adotadas pelas empresas (ir)responsáveis passaram por um (insuficiente) escrutínio. E mais recentemente foi lembrado que, depois de tantos anos, os suspeitos indiciados sequer foram julgados.
A meu ver é preciso acrescentar algo à análise desse crime como uma mera sequência de erros, porque não se trata de um evento singular. De fato, há pouco de anormal e peculiar nas tragédias de Brumadinho e Mariana.
A Vale — empresa formada a partir da privatização da (lucrativa, estratégica e eficiente) Companhia Vale do Rio Doce no anos 1990, estatal com um patrimônio e valor de mercado muito maior que o preço então pago pelo Pol de Empresários adquirentes — é um exemplo de eficiência. Com precisão cirúrgica, onde quer que chegue, domina e explora recursos naturais à exaustão, transformando a herança coletiva do planeta em lucros. No processo, deixa para as comunidades do entorno um passivo incalculável de esgotamento ambiental, poluição, degradação trabalhista, evenenamento do solo e mananciais, bem como todo um léxico de “acidentes” previsíveis e evitáveis.
Em outras palavras, é especialista em privatizar os ganhos e benefícios da atividade extrativista, enquanto socializa os custos na forma de externalidades negativas.
A responsabilidade por seus atos, muitos deles transitando perigosamente no limiar da legalidade, são cuidadosamente abafados e desviados por estratégias de Relações Públicas, Lobbying e Bullying jurídico. Quando muito, suas contendas são coroadas por multas irrisórias e declarações insípidas. E nisso não difere em nada de qualquer corporação capitalista. Esse tem sido o modus operandi da organização empresarial desde sua gênese. Historicamente, as instituições da “personalidade jurídica” e da “sociedade anônima” foram criadas para livrar proprietários de quaisquer responsabilidades diretas para com os atos “das empresas”.
A despeito do rastro de destruição que deixa, a Vale é indiferente à dor e prejuízos incalculáveis que causa. Não poderia ser de outra forma, pois não se trata de um indivíduo, mas uma entendidade impessoal. Em situações como a realatada, normalmente aposta na precificação da tragédia em multas e compromissos, que raramente corroem seus vultuosos ganhos. O acordo firmado recentemente em menos de 40 bilhões de reais com o governo de Minas Gerais pela tragédia de Brumadinho é um exemplo claro. Toda a bacia de um rio foi destruída, centenas de pessoas morreram, mas a responsável irá apenas entregar um punhado de papel pintado (dinheiro!) em troca de anos de exploração, destruição, descaso e vidas.
O equívoco está em esperar da organização empresarial um comportamento diferente. Empresas são, de fato, aparatos de mediação de relações de classe. Por meio delas, proprietários dos meios de produção valorizam seu estoque de capital, bem como viabilizam seu consumo de bens superiores. Para tanto, a organização empresarial busca controlar, explorar e transferir riquezas dos mais afastados rincões da terra, dos trabalhadores mais paupérrimos e dos mais bem formados, para as mãos de seus controladores. Trata-se de um aparato institucional de privatização das habilidades coletivas e recursos naturais.
No processo, engendram astutas decisões e programas de ação por meio dos quais envolvem outras classes, políticos, instituições e mesmo países inteiros no esquema, o que chamam pelo pretensamente neutro, ou até mesmo prestigioso, conceito de estratégia empresarial. Termo o qual, em outras palavras, significa empregar o engano, a inteligência e, quando necessário, a força para obter seus mais variados interesses.
As atitudes da Vale não distam, em nenhum momento, deste princípio fundamental. Não deveriam, portanto, chocar. É preciso que se compreenda que as empresas não são instituições sociais com o objetivo de prover bens e serviços de qualidade; esses são alguns dos meios para se chegar aos objetivos. A empresa procura valorizar capital, aumentar lucros, assegurar controle sobre recursos valiosos. E nesse processo, age como se estivesse em guerra. E de fato está: no meio de uma guerra de classes. Para alcançar seus objetivos, poderá até mesmo roubar, matar e destruir se perceber que as diferenças entre receitas e despesas compensam.
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