Durante a formação em administração, assim como no senso comum do dia-a-dia da gestão,[1] ouvimos falar de estratégia como algo com fins puramente individuais. Parece-nos que esta prática é simplesmente a maneira através da qual uma pessoa enfrenta os muitos desafios da existência. Ou então, a palavra “estratégico” se torna um sinônimo para “importante”.
Assim, ser estrategista toma a forma da qualidade de [bem] defender seus próprios interesses. Mas, na nossa opinião a estratégia tem um papel coletivo, e quando estes indivíduos pensam estar trabalhando exclusivamente no limiar de seus interesses mais egoístas, estão de fato reproduzindo atitudes de classe. Muitas vezes perversas e egoístas, mas não desvinculadas do grupo à qual pertencem.
Estratégia pode ser definida a partir da noção que opõe a racionalidade instrumental à comunicativa, contribuição do filósofo alemão Jürgen Habermas.
A racionalidade comunicativa, segundo ele, conduz as pessoas a tomarem ações que beneficiam não somente a si mesmas, mas principalmente à coletividade — ao conjunto dos seres humanos de forma indiscriminada. E, neste caso, Habermas diz que comunicativa é apenas a ação que privilegia a humanidade como um todo, sem privilegiar partes ou frações de forma egoísta ou a partir de quaisquer diferenças de classe, credo, etnia, gênero, opinião, entre outros.
Já a racionalidade instrumental é egocêntrica. Uma ação instrumental, que decorre de raciocínios assim classificáveis, tem por objetivo principal um interesse individual ou coletivo restrito. Ou seja, é uma ação que assume por papel atingir as aspirações de um indivíduo ou grupo em particular, mas que para isso não contribuem para os interesses do restante da sociedade.
Estratégias, portanto, são ações de caráter instrumental: têm um fim em si mesmas, são teleológicas; e este fim é necessariamente egoísta. Porém, apesar de ideologicamente nossa sociedade acentuar o caráter individual da estratégia, sua principal parcela se refere a uma coletividade restrita. E nesse ensaio assumimos o papel de trazer ao menos um breve vislumbre dessa face social que estratégia apresenta.
No plano individual, o processo capitalista de produção e distribuição nos alerta constantemente que vivemos num mundo competitivo, e que precisamos formar-nos enquanto seres capazes de enfrentar as pressões cada vez mais intensas do ambiente de mercado. Esse “ambiente”, esta metáfora tão comum, é usada para arregimentar a ideia de que as relações sociais – mediadas exclusivamente pelos mercados e suas “leis” – são como uma selva, na qual apenas o mais forte é capaz de sobreviver.
O indivíduo é então exortado a “pensar estrategicamente”, ou seja, raciocinar de maneira egoísta para antecipar suas atitudes com fins de atingir objetivos próprios. E, nesse processo, não importam quantos irão sofrer, desde que as metas sejam alcançadas.
Notável é que isso seja ensinado como regra geral, para todos. A defesa ideológica desse “princípio” é fundamentada na noção smithiana de que, quando indivíduos perseguem seus próprios interesses de maneira egoísta, todos os envolvidos alcançam o máximo de satisfação. Não é preciso sequer sair da seara de pensamento liberal para contestar esta ideia: John Nash, em sua contribuição à teoria dos jogos, destacou que quando indivíduos perseguem um mesmo objetivo egoísta, todos se atrapalham e o potencial máximo de satisfação do sistema não é alcançado.
Claro que a solução de Nash é deficitária: alguém tem que se contentar em ser o segundo lugar, ou seja, teríamos que aceitar ser dominados por outros para que a sociedade alcançasse melhor resultado de alocação. Mas, a lição aprendida com o raciocínio desse matemático é que, se todos perseguirmos interesses meramente egoístas, contribuiremos exclusivamente para que nenhum de nós consiga satisfazer suas necessidades.
Além disto, a noção de sociedade como “selva” é culturalmente construída. A sociedade é o que fazemos dela, pois ela não existe em si mesma, mas somente na soma complexa das atitudes e histórias dos muitos indivíduos. Se ensinarmos desde pequenos a todos que a sociedade é uma selva, isto será uma profecia auto-realizável. A sociedade será uma selva porque muitos, inclusive em situação de poder, acreditam nisto.
Podemos concluir que a ideia de que estamos imersos num ambiente hostil é construída ideologicamente.
A ideologia, como diria Marx e Engels, é um corpo de ideias, conceitos, práticas e mesmo instituições, que têm por papel esconder uma verdade. Normalmente a verdade escondida é que certos axiomas pretensamente racionais, no frigir dos ovos, servem aos interesses de uma classe e não de toda a coletividade. Ou seja, a proposição de que temos que ser estrategistas contribui na verdade para criar um mundo que não atende, necessariamente, a nossos interesses, mas sim aos interesses de um grupo de pessoas em particular.
Quem são essas pessoas?
Bem, para saber basta lembrarmo-nos de que, se a sociedade for considerada uma selva que premia os mais fortes, então aqueles que já possuem riquezas e poder para investir em si mesmos (e em seus negócios), e assim se tornarem mais competitivos, sempre terão vantagem sobre os demais. Tanto porque podem arcar com os custos da melhor formação educacional, como por que sempre poderão iniciar a luta com mais recursos.
Ou seja, a ideologia que prega ser a sociedade uma selva tem papel de assegurar que os já ricos e poderosos continuem assim. A própria noção de competição por meio da decisão racional instrumental é uma estratégia. É a forma de como um grupo de pessoas em situação de vantagem emprega para sobrepujar os demais. Trata-se aparentemente apenas de uma orientação individual, mas em sua essência tem um papel coletivo muito mais importante.
Então, as estratégias que notadamente moldam a realidade, a partir desse entendimento, estão muito além de ações para assegurar os interesses de um indivíduo. A estratégia é, antes de tudo, uma ação de classe.[2] Ou melhor, são práticas teleológicas cujos objetivos são coletivos – mas não com intenção de atingir as demandas de toda a humanidade, e sim as aspirações de uma círculo restrito. Uma estratégia é construída por uma classe para garantir seus interesses sobre as outras, para assegurar sua supremacia sobre os demais indivíduos ou grupos.
Ainda é possível afirmar que só existem estratégias porque existem disputas.
Essas disputas estão enraizadas na noção econômica de escassez: se todos os recursos e bens estivessem abundantemente a disposição de todos, não teríamos que criar planos de ação para assegurar o nosso acesso em detrimento dos outros.
Claro que, de certa forma, até mesmo a noção de escassez é ideologicamente construída e estrategicamente planejada. Sabemos, graças às pesquisas acerca dos níveis mundiais de produção de alimentos e outros bens, que seríamos capazes de satisfazer as necessidades básicas de toda humanidade. O problema é que uma classe social em particular consome muito mais do que é necessário, enquanto as demais não tem acesso ao mínimo.
Para garantir a sobrevivência desta falácia é que se empregam ações como (i) obsolescência programada, (ii) o sequestro de estoques, (iii) a operação abaixo do nível de eficiência máxima, (iv) a contração do ciclo de vida do produto, e tantas outras práticas para assegurar uma falsa noção de escassez, que premia o capitalista com lucros extraordinários.
Conclui-se que as disputas principais não são entre indivíduos, mas entre classes sociais. São as estratégias formadas no nível da luta de classes que terminam, pois, sendo reproduzidas no patamar das relações individuais. A origem das estratégias é a luta de classes.
Para ilustrar, façamos uma digressão. Existe um nível visível de movimentações estratégicas as quais não estamos acostumados a ver por conhecermos através de outro nome. Se estratégias são ações egoístas cuja essência é o interesse de uma classe social; e se chamamos de poder a capacidade de uma classe social fazer com que as demais ajam de acordo com suas vontades; a prática e a ciência que se debruçam sobre as relações de poder , em outros termos, também podem ser chamadas estratégia; e a isto entendemos como política.
Enfim, política é estratégia
Claro que podemos inverter a sentença e chegar ao absurdo de dizer que estratégia é política. Mas verdadeiramente isso não é tão absurdo assim. No princípio o curso de estratégia empresarial nas universidades americanas, como Harvard, chamava-se “política de negócios”.
Melhor, até muito recentemente no curso de administração da USP a disciplina que trata de estratégia chamava-se “política de negócios”.[3] O peso do termo é óbvio, deve estar claro que a disciplina “estratégia” ensina como uma classe social domina sobre as outras; assim como pretende mostrar a maneira através da qual uma fração de classe pode sobrepujar as demais.
Tal fato acaba por desnudar um aspecto muito importante da vivência empresarial: apesar de manuais, livros didáticos, literatura de aeroporto e articulistas em revistas de gestão (de qualidade duvidosa) afirmarem que política não deve fazer parte da administração de empresas, o fato é que a gestão empresarial (organizacional) é, por princípio de natureza, política.
A essência da estratégia é a luta de classe. E a luta de classe se manifesta através da administração e da gestão, por meio de propostas de organização do mundo que normalmente visam garantir os interesses de uma classe ou fração de classe sobre as demais.
Propostas estas que moldam a gestão da firma — pois é o aparato institucional criado pela classe capitalista para controlar a formação de valor —, as organizações da sociedade civil e mesmo o Estado, instituição criada para mediar os conflitos entre as classes sociais.
Resta saber quando teremos a coragem de construir cursos de administração que sejam menos ideológicos e mais honestos em suas proposições. Enquanto se pregar uma gestão apolítica, ou uma estratégia com ares de racionalidade absoluta, escolas de administração parecerão muito mais com templos religiosos do que com laboratórios de ciência. E, graças a isto, sempre relegaremos para um segundo plano as questões verdadeiramente importantes — como a justa distribuição de bens ou a representação política como estratégia de classe —, enquanto discutimos as pequenezas do egoísmo instrumental.
[1] Cursos de administração medíocres se diferenciam muito pouco do senso comum. E, pior, tudo faz crer que estes representam a lógica do mercado.
[2] Uma forma de compreender a noção de “classe social” é enxergá-las como grupos de indivíduos com interesses em comum. Tal convergência de interesses existe porque o círculo de pessoas em questão teriam em comum algo estrutural, algo que inclusive serve para moldar as suas concepções de mundo. E é a maneira através da qual um indivíduo adquire a renda necessária para sobreviver que se formam suas concepções de mundo, e se moldam seus interesses. Portanto, classes sociais são grupos de indivíduos que constroem a renda necessária para sua reprodução da mesma forma. Por isso os trabalhadores são uma classe diferente da dos capitalistas, pois o fundamento de sua renda é diferente e conflitante. Consequentemente, distintas maneiras de auferir salário, assim como capital valorizado em diferentes mercados ou atividades, formam subclasses trabalhadoras que denominamos frações de classe. Por exemplo: os empregados da construção civil são uma fração da classe trabalhadora, que têm interesses e visão de mundo diferentes dos funcionários da indústria automobilista. Da mesma forma, capitalistas do sistema financeiro possuem interesses e visões de mundo distintos daqueles capitalistas industriais com poder de alcance regional.
[3] http://www.ead.fea.usp.br/eadonline/estrut-disc/ant_estrut_diurno.htm
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