Um dos pilares essenciais do mito contemporâneo da brasilianidade é a hipótese do “homem cordial” brasileiro, levantada pelo historiador paulista Sério Buarque de Holanda.1 Como bem denuncia Jessé Souza em alguns de seus recentes livros de divulgação científica,2 essa hipótese é tão poderosa quanto falsa. Uma simples observação da história secular e recente da nação brasileira é capaz de rapidamente desmistificar o engano.
O surgimento e consolidação da civilização brasileira foi marcada desde sua gênese por conflitos, rebeliões, golpes e tentativas de revolução. Confederação dos Tamoios, Guerra dos Aimorés, Guerra dos Palmares, Confederação dos Cariris, Revolução Liberal da 1821, Independência da Bahia, Confederação do Equador, Revolta dos Malês, Revolta(s) do Vintém, Guerra de Canudos, Guerra do Contestado, Coluna Prestes, são alguns exemplos pontuais de como índios, negros, imperialistas, islâmicos, descendentes dos invasores europeus, brasileiros de modo geral, expressavam com armas sua discordância contra as injustas (modernizadoras?) imposições de poderosos.
Há quem diga que a vocação insurrecionista do brasileiro tenha ficado no passado, mas o dia-a-dia das grandes cidades do país dizem o contrário. Desde a quartelada de 1964, que depôs o então legítimo presidente João Goulart e levou a uma ditadura empresarial-militar no Brasil, se observa a consolidação de uma estrutura social de flagrante desigualdade de renda e acesso às benesses da modernidade. A favelização das grandes cidades, seu contexto de vácuo de serviços essenciais e inapetência governamental, é um claro indicador dessas disparidades. No entando, situação de abandono social não passa despercebida pelos humores populares.
A crescente violência urbana no Brasil é, na verdade, o resultado da sublimação possível diante do extremo descaso da elite e da falta de perspectivas do povo. Das 50 cidades mais violentas do mundo em 2019, o recorde de 14 num mesmo país é dividido por Brasil e México. Em outras palavras, a revolta popular continua todos os dias, seja em horas de trabalho impossíveis por um salário ridículo, seja na empunhadura das armas carregadas pelo movimento nos morros (RJ), vales (SSA) e baixadas (SP) das cidades.
Ademais, até mesmo intelectualmente o provo brasileiro é, de certa forma, pouco cordial. Foi no Brasil — junto com México, Chile, Uruguai e Argentina — que se desenvolveu uma das principais explicações críticas do subdesenvolvimento ainda à disposição, a Teoria Marxista da Dependência. A intelectualidade brasileira foi capaz de produzir muitos, e profundos, críticos sociais, de Milton Santos a Ruy Mauro Marini, de Maria da Conceição Tavares à Vânia Bambirra. Ainda hoje nas Universidades brasileiras, embora geridas com mão de ferro por conservadores e/ou pelo pensamento neoliberal, circula um rol de teóricos, acadêmicos e pensadores críticos que não pode ser ignorado.
Mesmo na Administração — a ciência criada para sistematizar as formas de exploração e alienação do trabalho —, o pensamento crítico e radical legou referências de peso. Para além de Alberto Guerreiro Ramos, Maurício Tragtemberg e Fernando Prestes Motta, pioneiros talvez universais das abordagens críticas no estudo da gestão e organizações, scholars como José Henrique de Faria (UFSC), Nelson Oliveira (UFBA), Ana Paula Paes de Paula (UFMG), Rafael Alcadipani (FGV), Elcemir Paço Cunha (UFJF), Maria Ceci Micosczy (UFRGS), entre outras, representam uma já sólida tradição crítica.
Em suma, longe de ser uma nação de mulheres e homens cordatos, o Brasil é um país de povo guerreiro, revoltado e violento, em muitos casos crítico ferrenho do mainstream, historicamente acostumado a pegar em armas contra a opressão. A ideia de “brasileiro cordial” é, na verdade, uma farsa. O que não significa que, sob a égide do modo de produção capitalista e conduzida por uma elite mal-intencionada, avessa aos estudos e preguiçosa, não haja uma massa populacional manipulada em diversos níveis, capturada na armadilha de um Estado com vocação para a necropolítica.
Muita embora seja evidentemente equivocada, essa concepção errônea tem uma finalidade na luta de classes. Para Jessé Souza, a hipótese de “brasileiro cordial” em Holanda é uma derivação da noção de “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau. Enquanto a versão do iluminista francês servia como instituto fundamental para uma concepção de direito natural, em Holanda essa ideia é utilizada para compor uma ideologia de depreciação da identidade nacional. O objetivo amplo dessa ideologia é justificar a submissão do povo à aquela mesma elite, bem como do Brasil às nações imperialistas.
O que mostram a história insurrecionista do Brasil, a violência de suas grandes cidades hoje em dia, bem como a tradição de pensamento social crítico, é que a hipótese do “homem cordial” de Holanda é simplesmente equivocada. O fato de ter se tornado o pilar da teoria do patrimonialismo é evidência de que uma (parcela) de elite nacional precisa justificar ideologicamente o injustificável: a dominação sobre o povo, a demonização do Estado, a subserviência ao imperialismo e os preconceitos regionais que ainda hoje perduram. Em verdade, a população brasileira luta diariamente por sua vida e interesses, a ferro e fogo se necessário. E esse é o medo maior de nossos capitalistas.
1 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
2 SOUZA, J. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015.
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