Resenha: “A Estratégia Nacional de Segurança” Estadunidense, sob G. W. Bush

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UNITED States of America. The national security strategy. Washington, DC, set. 2002. Disponível em: <http://www.globalsecurity.org/military/library/policy/national/nss-020920 .pdf>. Acesso em: 6 abr. 2010.

Publicada pelos EUA em 2002 como resposta política ao contexto internacional ressignificado sob a sombra dos ataques de 11 de setembro de 2001 em seu próprio território — quando a Al-Qaeda, grupo que utiliza de terrorismo para afirmar sua agenda, seqüestrou e lançou aviões comerciais sobre edifícios que, a seu ver, simbolizavam o poderio norte-americano sobre o mundo —, a estratégia de segurança do governo marcou a primeira década do século XXI de muitas formas. A principal destas, a nosso ver, como exemplo prático da concepção de que, quando uma hegemonia mundial se vê ameaçada, recorre ao uso da força para manter sua influência e, assim, solapa as bases de sua própria existência enquanto tal. Ou não…

Nosso objetivo com esta resenha, porém, não é avaliar tal documento como um todo, ou sequer a conjuntura e estrutura das quais emerge, mas tão somente lê-lo à luz da tradição hobbesiana em Relações Internacionais. O intento principal aqui perseguido é notar quais as principais proposições da concepção política de Thomas Hobbes sobrevivem no texto, quais se afastam, e também quais se aproximam da tradição realista das relações internacionais (RI), auto-intitulada herdeira d’uma análise hobbesiana. O texto em si é dividido em nove partes, sendo a primeira uma “visão geral” sobre a “estratégia internacional americana” (p. 1), e as demais aplicações desta em elementos mais específicos, contemplando deste a aspiração universal de seus valores (p. 3-4) até a proposição de uma agenda de cooperação [integração] este os Estados (p. 25-28).

As linhas mais importantes para nós revelam-se rapidamente, apesar de se descortinar por todo o escrito. Este, notadamente uma composição coletiva no qual a estilística transita entre o pragmatismo jurídico norte-americano e o discurso burocrata militar, culmina num intransigente e até mesmo contraditório ultimato ao mundo quando afirma:

We will take the actions necessary to ensure that our efforts to meet our global security commitments and protect Americans are note impaired by the potential for investigations, inquiry, or prosecution by the International Criminal Court (ICC), whose jurisdiction does not extend to Americans and which we do not accept.

[…]

In exercising our leadership, we will respect the values, judgment, and interests of our friends and partners. Still, we will be prepared to act apart when our interests and unique responsibilities require. (p. 31).

Esta passagem particularmente aponta uma importante característica atribuída tanto à leitura política de Hobbes quanto ao realismo em RI: trata-se de uma declaração direta de independência em relação a uma instituição supranacional e, mais, ao próprio conjunto de países. Assim, nas entrelinhas lê-se que o Estado seria, de fato, único ator relevante no palco das relações internacionais; também parece conceber que alguns Estados são mais poderosos que outros e, portanto, a estes devem ser resguardados mais direitos [e talvez deveres] que aos demais; poder este visivelmente montado a partir de uma concepção realista de capacidade militar, amplitude territorial, mas acrescido pelo elemento econômico, sobretudo quando adiante ressalta o dinamismo de sua economia como um fator diferenciador em relação às outras nações. E, como que concordando que no sistema internacional (SI) impera um tipo de anarquia, expõe sua intenção de ignorar interesses divergentes para assegurar os seus próprios.

O SI seria, já numa leitura realista, mais próximo do estado de natureza como o concebeu Thomas Hobbes: cada indivíduo busca seu interesse particular; não há governo; então cada qual, numa luta de todos contra todos, se vale de sua capacidade individual para se sobrepor. É interessante notar que esta concepção prevê o Estado como uma unidade individual de valores e interesses, exatamente o que apregoa o documento em questão quando afirma que “the U.S. national security strategy will be based on a distinctly American internacionalism tha reflects the union o four values and our national interests.” (p. 1).

Acreditamos que um discurso emerso da instituição social cujo principal objetivo é defender uma integração interna, sobretudo aquela que responde aos interesses de suas classes dominantes, não poderia, de fato, seguir um caminho diferente. Ainda mais considerando que o documento, em certos momentos, aponta para uma pretensamente necessária articulação de poderes no plano internacional com fins de promover uma integração ampla debaixo do que acredita serem valores universais. Ou seja, para defender uma integração maior externamente é preciso pressupor uma integração interna.[1]

Apesar destas aproximações com o que podemos chamar de leitura hobbesiana das relações internacionais, é possível notar também alguns distanciamentos muito claros.

Em primeiro lugar, o texto afirma uma proposta de segurança nacional para os EUA usando o papel beligerante do Estado no intuito não necessariamente de defender a paz, mas principalmente de assegurar a liberdade. Ou ao menos para disseminar sua concepção particular de liberdade: o livre-empreendimento. Em Hobbes, os indivíduos imersos no estado de natureza, abrem mão de sua liberdade para montar um Estado que assegure a paz como o bem comum. Para a concepção cristalizada no texto aqui resenhado, o Estado deve até mesmo abdicar da paz para assegurar a liberdade, desde que esta atenda a seus interesses, previamente expostos como universais.

Em um determinado momento também se distancia do realismo em RI, fazendo uma rápida concessão ao idealismo de raiz kantiana, ao defender o papel das organizações supranacionais, conquanto sejam capazes de auxiliar na disseminação de seus valores. Assim na introdução ao texto assinado pelo presidente americano à época, se afirma que “the United States is committed to lasting institutions like the United Nations, the World Trade Organization, the Organization of American States, and NATO as well as other long-standing alliances. Coalitions of the willing can augment these perment institutions.” (p. vi). Marcante é o fato de que só cita diretamente instituições nas quais os EUA possuem histórico de maior controle, e que estiveram, desde sua gênese, associadas à promoção do livre-empreendimento como direito natural dos indivíduos.

Convém lembrar que o realismo em RI afirma que tais instituições não têm autonomia no sistema internacional, mas tão somente refletem o (dês)equilíbrio de poder entre os países que as compõem. Ou seja, se em discurso parece haver um alinhamento com a tese, na prática a pretensão de fortalecimento das instituições que podem, de alguma forma, dominar leva a crer que nas entrelinhas se esconde um entendimento de que tais organismos, de fato, são apenas marionetes nas mãos dos Estados.

Uma terceira diferença marcante pode ser encontrada na concepção do tamanho e poder do Estado defendido no plano em questão, e aquela que emerge de Thomas Hobbes. O filósofo inglês idealizou um Estado que, imbuído do projeto de assegurar a liberdade, mantivesse tamanho poder e autonomia que se aproximaria d’um monstro mítico – a tal instituição tudo deveria ser permitido para que se obtivesse o bem comum, a paz. No documento publicado pelo governo americano em muitas partes se fala, no entanto, de que o papel do Estado deve ser limitado. Isto fica bastante evidente quando apregoa os valores que pretendem defender como universais:

[…] the United States must defend liberty and justice because these principles are right and true for all people everywhere. […] America must stand firm for the nonnegotiable demands of human dignity: the rule of law; limits on the absolute power of the state; free speech; freedom of worship; equal justice; respect for women; religious and ethnic tolerance; and respect for private property. (p. 3, grifos nossos).

Interessante notar que se defende uma instância de poder absoluto para o Estado, uma idealização que responde a seu projeto hegemônico, mesmo que se diga haver limites a serem respeitados. E os principais limites estão contidos na concepção de que o Estado não deve avançar sobre a propriedade privada — o que interpretamos aqui, claro, estar se referindo à propriedade privada do Capital —, nem muito menos sobre o “direito natural” de livre empresa (p. 18-19). Ou seja, a principal proteção é para a classe empresarial.

Notamos que o documento se aproxima de uma leitura realista hobbesiana das RI quando defende que: (1) o sistema internacional é anárquico; (2) os estados são unidades individuais independentes; (3) há necessidade de uma balança de poder para assegurar a ordem; e (4) é possível que tais unidades se articulem em coalizões para assegurar um bem-comum. Mas, alguns pontos nevrálgicos marcam uma diferença entre o texto e a noção de Thomas Hobbes aplicada à análise do sistema internacional, sobretudo quando afirmam: (1) que o Estado deve assegurar a liberdade, e não necessariamente a paz; (2) que há um horizonte favorável de atuação para as organizações supranacionais; e (3) este mesmo Estado tem que possuir um poder limitado. De fato, o documento em questão não é, sobremaneira, oriundo de uma forma de pensar a realidade do sistema internacional, emana sobretudo de um corpo de interesses que, ora alinha com uma concepção, ora com outra, desde que seus desejos possam ser referendados.

Tanto o é que, além da herança hobbesiana, é possível notar traços do idealismo kantiano quando defende as organizações supranacionais; também há muito do liberalismo econômico, quando da defesa do livre comércio; ou até mesmo pitadas de um realismo gramsciano, ao menos quando encontramos nas entrelinhas do texto um projeto, se não hegemônico, ao menos de dominação. Ou seja, enquanto documento político, A estratégia de segurança nacional para os Estados Unidos da América se mostra num rico texto arraigado na realidade concreta, na qual são interesses materiais, e não as idéias, que formatam o mundo.


[1] Lembrando da conexão de George W. Bush com fundamentalistas cristãos na América, não é possível deixar de lado, portanto, uma referência bíblica que aqui parece apropriada. Jesus, tendo sido confrontado por fariseus que o acusavam de ser enviado por satã para expulsar demônios, afirmou em resposta: “[…] Todo o reino, dividido contra si mesmo, será assolado; e a casa, dividida contra si mesma, cairá.” (Lucas 11:17). Bush, empenhado na guerra contra o terror, por ele mesmo associado numa metáfora como “eixo do mal” — Irã, Coréia do Norte, Venezuela etc. —, simplesmente se esquece de observar que os próprios termos da integração interna de seu país não estão tão claros. Ou será melhor dizer que foi preciso usar oportunamente o momento de comoção nacional em torno da tragédia para tentar construir uma, ainda que não-perene, sensação de integração interna para justificar seus atos futuros?


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