Ao escolher o filme do final de semana, ou ponderar sobre o próximo seriado no canal de streaming, geralmente se busca na internet a resenha de um dos muitos críticos da arte que se passa nas telas. Críticos de teatro alertam sobre os tropeços e as alegrias de um novo espetáculo. Críticos de música divulgam seu escrutínio do mais recente álbum da artista da moda. Até mesmo aquele amigo inquieto, insatisfeito, sempre crítico, nos chama a atenção com suas colocações ora espirituosas, ora inconsequentes. A crítica parece estar em todo lugar.
Essa palavra, crítica, faz parte da educação formal desde os anos iniciais. Na escola, espera-se que os estudantes desenvolvam um assim chamado pensamento crítico; em muitos casos, ao mesmo tempo em que não questionem autoridades, regras e padrões de comportamento considerados oportunos pela instituição. A Universidade, por sua vez, abriga desde obras cujos títulos a carregam em si — Crítica da Razão Pura, Crítica da Economia Política —, até professores que se conhecem por, ou se autointitulam como, “críticos”.
Na seara da investigação científica não poderia ser diferente. Convencionou-se separar a pesquisa crítica daquela, por assim dizer, não-crítica. Como se alguns procedimentos, métodos, formas de pensar ou temas se permitissem a tranquila calmaria da aceitação passiva do mundo como ele é, enquanto outros se ocupassem de manifestar discordância. Como se os tais professores críticos empregassem sistemas de pensamento propriamente críticos, métodos críticos de coleta e análise, assim como, talvez, um discurso crítico. Há um pouco de verdade nisso, assim como de exagero.
O que essas críticas têm em comum? E, mais importante, o que é pensamento crítico?
A proposta desse texto é apresentar uma interpretação do que é pensamento crítico, discutindo sobretudo do que se trata quando se usa a palavra crítica. Ao final, ensaia-se um chamado às letras (que poderia ser, afinal, às armas!) por uma pesquisa crítica, em nome do saber que liberta.
E a Crítica, então, do que se trata?
Em qualquer consulta a um dicionário, ou a uma ferramenta de procura na internet, chega-se à informação de que a palavra “crítica” deriva do radical grego arcaico Krisis, que significaria “julgamento”, “análise” ou “decisão”. Do mesmo radical, não por acaso, também procederia o termo “crise”, que significava aquele momento decisivo, quando uma ação ou escolha precisa ser feita.
Porém, no campo da produção sistemática de conhecimento, a noção de crítica assume um sentido mais denso e profundo. Na medida em que as ciências sociais se desgarram da filosofia moral por volta do século XIX — primeiro a economia, mais adiante a sociologia e as demais —, se consolidam ao menos duas atitudes de saber. A primeira produz conhecimento de forma pretensamente desapaixonada sobre os objetos, em busca de leis, teorias gerais e capacidade preditiva. Esta é a Ciência Positiva.
A outra, por sua vez, partia da constatação de que na sociedade existem costumes, instituições, processos e outras práticas que servem para oprimir. A partir desta premissa, a ideia era julgar e analisar não apenas as sociedades, mas também a ciência e o que as pessoas pensam sobre si mesmas e sobre o mundo, a fim de denunciar as formas de opressão e as narrativas criadas para justificá-las. A essa atitude de ciência concede-se, portanto, o qualificador de Estudo Crítico.
Com o passar dos anos, diferentes tipos de opressão foram identificados e expostos por estudiosos dos mais distintos campos de saber. Paralelamente, pensadores ficaram marcados se não pelo pioneirismo, com certeza pelo vulto de seu esforço de análise. Marx levantou a questão do caráter ideológico da economia política burguesa, bem como do capitalismo como um sistema de exploração do trabalho. Simone de Beauvoir demonstrou como a sociedade ocidental se alicerça em dinâmicas de opressão do homem sobre a mulher. Frantz Fanon (2008) expôs como até mesmo a autoimagem das comunidades não-brancas são definidas pelo sistema de segregação racial do ocidente branco, como extensão de suas práticas coloniais e de suas dinâmicas de violência concreta, política e simbólica.
Em comum, esses trabalhos guardam em si a atitude de duvidar das interpretações e saberes convencionais, do assim chamado mainstream, para identificar e denunciar práticas e processos subjacentes de opressão.
Além disso, propõem novas formas de produção de conhecimento. A ideia é que, por meio dos procedimentos convencionais de pesquisa (aqueles da ciência positiva), o esforço científico seria conduzido de volta para conclusões que ratificam as formas de opressão. Assim, tais procedimentos reforçariam o saber já consagrado e o status quo, outrossim dando continuidade à estrutura social vigente e suas relações típicas e, portanto, reproduzindo as práticas de exploração, subsunção, discriminação etc.
Chamamos de Estudo Crítico (ou Pesquisa Crítica) a trabalho que (i) discorde, ao mesmo tempo em que desafie, as formas convencionais de se fazer ciência (condição necessária), e (ii) denuncie ou exponha dinâmicas de opressão (condição suficiente). Nesse sentido, a pesquisa crítica assume dois objetivos, um direto e outro indireto, o de produzir conhecimento por meios novos e o de iniciar, ou ao menos proporcionar os instrumentos para, a emancipação face a opressão em suas diversas formas.
Por uma pesquisa emancipatória
Esse é o chamado deste texto. Que se produza conhecimento não como mera ocupação mecânica de especialistas. Que se faça ciência não com o objetivo de reforçar e reproduzir as instituições opressoras. Que se procure a crítica capaz de demolir estruturas ancestrais de opressão para construir o novo. Não uma crítica destrutiva, mas aquela que não se cala diante da mais naturalizada forma de domínio, exploração ou discriminação, ao mesmo tempo em que aponte caminhos e alternativas.
Enfim, que o verdadeiro produto do esforço científico seja, em primeiro lugar e sempre, a emancipação. O pensamento crítico é aquele que procura denunciar as formas de opressão, oferecer instrumentos para combatê-la e iluminar a mente de oprimidos e opressores para que percebam que um mundo melhor é possível. E, sobretudo, que todos podem usufruir de melhores condições de existência.
Adaptado de:
CRISTALDO, R. C.; SIMÕES, P. É. M. O chamado da pesquisa crítica. In: ALVAREZ, G.; NASCIMENTO, I. R. T. do (Org.). Onde os “monstros” não têm vez: Desmistificando ciência e pesquisa por caminhos de possibilidades. Juazeiro do Norte: PRPI/UFCA, 2021. p. 34-47. Disponível em: http://ebooks.ufca.edu.br/catalogo.
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