A ilusão da ordem e a barbárie dos nossos tempos

Em um espaço do sítio pertencente ao jornal Folha de São Paulo, no idos de 2014, a jornalista Rachel Sheherazade publicou defesa de opinião acerca de uma afirmação sua, que dizia “compreender (e não aceitar, que fique bem claro!) a atitude desesperada dos justiceiros no Rio.”, se referindo ao espancamento e humilhação pública de um jovem suspeito, pobre e negro, que à época fora acorrentado nu a um poste. No texto Ordem ou Barbárie, a jornalista argumenta basicamente que a situação de segurança no Brasil é ruim, o governo é inócuo e as instituições de direitos humanos são usadas para proteger os bandidos, enquanto os “cidadãos” seriam deixados de lado. Sua opinião, embora generalizadamente disseminada, está envolva em muitos véus de obscura ignorância que precisam ser retirados para que seja possível realizar um debate verdadeiramente eficaz sobre as questões de segurança que acometem a nação.

A jornalista começa afirmando que o “fenômeno da violência” é ancestral. Pouco ciente disto, escolhe muito bem o termo que usa: a violência é, de fato, um fenômeno. Um “fenômeno” é a aparência imediata de algo que por este é, ao mesmo tempo, expresso e oculto: o que conhecemos por númeno, ou coisa-em-si. O fenômeno é a realidade como aparece ao primeiro olhar que, ainda desprovido da crítica, capta informações meramente com os sentidos, sem refletir mais apropriadamente a respeito. Por outro lado, o termo “númeno” se refere à “lei do fenômeno”, sua explicação; se refere aos processos sociais que levam o fenômeno a existir como tal. E esta lei não aparece diretamente, mas precisa de um esforço mental e crítico para develá-la e entendê-la.

O fenômeno da violência, de forma concreta, surge no seio da sociabilidade humana desde tempos imemoriais, talvez mesmo antes de podermos nos referir a uma “humanidade”. Mas se aparentemente a violência é a mesma — humilhação, tortura, exploração, escravatura, servidão, genocídio, guerra, assassínio, roubo, estupro etc. —, os processos sociais por detrás da violência, esses foram se transformando ao longo da história. Ou seja, em cada momento do devir histórico, dinâmicas sociais distintas levaram ao afloramento da violência em suas muitas formas; as coisas-em-si que explicam os fenômenos mudaram. Embora tenha havido tortura durante a Santa Inquisição Católica na baixa idade média, assim como tortura durante a Ditatura Burguesa-Militar no Brasil na segunda metade do século XX — violências aparentemente do mesmo tipo —, os processos sociais que levaram à tortura lá e cá foram muito distintos. Dito de outra forma, as causas e o contexto da tortura não eram as mesmas.

Então, não é suficiente apontar que violências ocorrem na nossa sociedade, pois são meras aparências de processos sociais mais complexos que certamente estão por detrás. Não é o bastante mostrar alarmantes níveis de consumo de entorpecentes, sem entender que causas sociais levam as pessoas ao consumo, permitem o tráfico e circunscrevem o delito às zonas de pobreza, enquanto casos oriundos dos espaços de riqueza são tratados como meramente patológicos. É fútil uma argumentação rasa que se prenda na constatação do imediato, como uma crítica da ausência do Estado — a qual esconde uma leitura idealista de “Estado para o povo”, que não tem existido na prática no nosso mundo atual —, ou a ideia de que os direitos civis atendem aos interesses dos criminosos — sem lembrar que os “remediados” e “ricos”, se não monopolizam a virtude, guardam para si o exclusivo controle dos aparatos que asseguram seus direitos comerciais, de consumo, civis, empresariais, frente ao restante da sociedade.

É necessário, na verdade, uma reflexão maior acerca das causas da violência. A lógica que a vincula com pobreza, devo concordar, também é infantil: a pobreza vem a ser igualmente um fenômeno arraigado nas mais profundas raízes da humanidade, mas cujas explicações, longe da interpretação naturalista imposta pelo liberalismo político-econômico, são distintas em cada momento histórico. Afirmar que violência e pobreza estão interconectadas é afirmar o óbvio; dizer que há uma relação de causalidade direta entre estas é, aparentemente, um erro. A grande maioria dos pobres não pratica crimes, enquanto que as maiores e mais devastadoras agressões contra a humanidade vieram exatamente das ordens e dos desmandos dos mais ricos e poderosos — vide as guerras, os genocídios, as limpezas étnicas, entre outras.

O problema de não se refletir sobre as causas fundamentais das questões que nos cercam é muito prático. Quando, por exemplo, a jornalista sugere ações contra a violência, pede meramente a repressão do fenômeno pelas vias de mais violência: incitando o governo a gastar um volume maior de recursos em segurança pública, e menos “para Cuba, para Copa”; sugerindo hábil e subliminarmente armar o homem comum, quando diz que “[o governo buscou] desarmar os cidadãos (contrariando o plebiscito do desarmamento) e deixá-los à mercê dos criminosos […].”; criticando que policiais sejam investigados pelas suas ações no exercício da profissão, quando diz que “a nova estratégia do governo, por meio do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, é neutralizar a polícia, abolindo os autos de resistência.”; e, em outras passagens, aflora um discurso de violência que envergonha sequer reproduzir aqui, imagine ser defendido?!

Todas estas soluções lidam com as consequências, com a superfície fenômenica da violência. Mas nem minimamente parecem resvalar em suas causas, uma vez que tem sido repetidas desde sempre com resultados muito limitados, senão inócuos. Pelo contrário, armar a população, garantir impunidade para as forças de segurança, aumentar e intensificar penalidades e encarceamento, só têm aumento a violência, reforçado a insegurança.

Não tenho aqui comigo tampouco as respostas para explicação das origens e soluções para a escalada da violência no Brasil. Mantenho a humilde compreensão de que a abordagem superficial levantada pela jornalista não é o suficiente. No entanto, suas palavras, repetidas com o fervor típico daqueles dotados das certezas que só a ignorância é capaz de prover, podem encontrar eco principalmente entre os que decidem abdicar da reflexão acerca dos problemas coletivos em favor das questões individuais. É mais fácil deste jeito. O enigma está no fato de que exatamente esse tipo de discurso incita mais violência, e não melhores resoluções.

É preciso que, junto a ações mais imediatas e paliativas contra o problema, venham a ser reforçados os já eficientes e profílicos foros de pesquisa e reflexão sobre o tema, cujo objetivo tem sido o de encontrar as causas estruturais da violência e propor as mudanças necessárias nas políticas de segurança pública. E, mais, se faz imperativo que, uma vez tendo encontrado tais causas, o poder público esteja pronto para enfrentar os dilemas que necessariamente emergirão — “pronto” não apenas em termos de aparatos institucionais, como principalmente no tocante à liberdade necessária para tanto, que precisa do fim da vinculação entre a política profissional e os interesses empresariais. Pois, pode ser que, no limiar do horizonte de eventos, encontremos no cerne das causas da violência os mesmos que agora contra ela se erguem exaltados: a ganância, o individualismo, o consumismo, junto com os interesses do capital e de seus acólitos.


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