De tudo que há de pior na ciência enxertada na sociedade burguesa (embora admirável, a ciência se envolve em circunstâncias nas quais deixa muito a desejar), um de seus momentos menos nobres é quando se torna um negócio. E um dos mais estranhos espaços do mundo da ciência-negócio são as revistas científicas de conteúdo pago.
Por causa da presença de editoras capitalistas que concentram a publicação, distribuição e venda de artigos científicos, os conhecimentos ali contidos tendem a ser enviesados, a disseminação de informações é prejudicada por conta do acesso restrito aos resultados de pesquisa e, assim, perpetua-se um esquema de enriquecimento que não remunera nem autores e nem revisores, transferindo dinheiro público para o setor privado, sem que as empresas de fato contribuam para a construção de conhecimento.
Bem, voltemos ao começo. No mundo das publicações científicas as coisas funcionam mais ou menos assim:
(1) acadêmicos, quer sejam estudantes de pós-graduação ou pesquisadores seniores em instituições de renome, para encontrar reconhecimento em seus campos de estudo, precisam publicar artigos científicos resultantes de suas investigações;
(2) um dos principais espaços de publicação são os periódicos (revistas) científicos, que normalmente são classificados hierarquicamente dos mais representativos aos menos representativos – no Brasil, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Capes, publica um ranking chamado “Qualis Periódicos”.[1] A qualidade de um periódico é normalmente mensurada a partir da quantidade de acessos e referências que um periódico recebe, entre outros fatores, como o próprio processo de seleção. Ou seja, é a sua capacidade de disseminar a informação entre pesquisadores-chave num campo de conhecimento que diz se um periódico tem boa aceitação;
(3) a seleção de artigos em cada periódico é relativamente diferente, mas de modo geral se dá através da submissão dos textos, os quais são triados por um corpo editorial auxiliado por acadêmicos de renome no campo, então encaminhados para avaliadores “independentes” que classificam os artigos em um processo de Double blinded review (nem autores nem revisores se conhecem);
(4) a mensuração de qualidade dos artigos normalmente está vinculada ao nível de qualidade da própria publicação/periódico de destino;
(5) quanto mais artigos publicados, e quanto mais bem classificados os periódicos nos quais forem publicados, mais importante um pesquisador se torna – logo, consegue melhores trabalhos, acesso superior a financiamentos públicos e/ou privados, convites para eventos etc.
Do ponto de vista conceitual, esse sistema parece bom, mas a presença de organizações cujo objetivo é o lucro (as empresas capitalistas), em meu ponto de vista, enfraquece e relativiza a lisura de todas essas etapas e procedimentos.
E o problema é exatamente o fato de que a maior parte dos periódicos científicos bem ranqueados estão concentrados sob o domínio de um punhado de editoras capitalistas, empresas que constroem seu lucro distribuindo e vendendo acesso aos artigos.
A propagação do erro
Em primeiro lugar é preciso dizer que o blind review não garante a qualidade do texto nem a fidelidade das informações. Isto acontece, pois revisores não estão necessariamente comprometidos com a construção de conhecimentos mais precisos, inovadores ou representativos.
Como já foi dito, para alguém ser considerado um pesquisador de renome, este deve publicar o máximo de artigos que puder em periódicos com alto fator de impacto, ou mais bem colocados nos rankings de classificação. Então, as publicações acabam sendo muito concorridas, pois as revistas bem ranqueadas atraem um maior número de submissões. Com um grande número de submissões, os avaliadores ficam sobrecarregados e tendem a ser mais relapsos ou rápidos no julgamento da qualidade de artigos; ou, avaliadores ainda não completamente bem-treinados são engajados para suprir a demanda.
Isso termina por privilegiar aqueles trabalhos que endossam as opiniões e pesquisas já dominantes. Artigos e pesquisas que contradizem o que um campo de conhecimento já acredita por verdade, o mainstream, normalmente demandam um tempo maior de avaliação, já que são fundamentados em pressupostos, premissas, e muitas vezes em referências de autores e procedimentos pouco usuais. O avaliador, ao se deparar com algo que escapa ao comum de suas leituras e práticas, e diante de um grande número de outros artigos para analisar, pode preferir simplesmente rechaçar o diferente em favor do já conhecido.
Um outro fator que contribui para o sucesso de um pesquisador é participar das equipes de avaliadores e editores em uma revista científica de renome, o que é conquistado a longo de anos de publicações bem sucedidas e formação de rede de contatos. Porém, num campo científico, as posições (opiniões, ideias) dominantes em geral controlam as publicações mais importantes. Esses poderes se reproduzem ao trazer para próximo de si indivíduos que endossem suas convicções, compartilhem de suas ideias; logo, os revisores são muitas vezes escolhidos entre aqueles que, obviamente, estão alinhados aos interesses e opiniões dominantes no campo.
Quando surge uma conclusão, procedimento ou ideia diferente do usual, isto ameaça as posições de poder construídas sobre as ideias mais antigas, logo a tendência de um artigo bom, porém mais crítico, ser mal avaliado é muito maior. Como é possível inferir a partir de Pierre Bourdieu, a ciência se constrói como um conjunto de relações de poder ao redor de algumas ideias e conceitos dominantes que formam um campo, um complexo de estruturas subjetivas de pensamento e indivíduos à estas alinhados. Estes campos não necessariamente estão comprometidos com a construções de verdade, mas muitas vezes engajados na defesa de sua própria posição social, importância e continuidade — num processo de manutenção de poder — que, inclusive, pode se colocar contra a busca da verdade.
Além de tudo isto, muitas vezes os autores, para ter seus trabalhos aceitos, endossam as opiniões dominantes a despeito do que seus dados e pesquisas mostrem. Sabendo que os artigos fundamentados em pensadores críticos, elaborados através de procedimentos de pesquisa menos conhecidos, ou que contestem o status quo, são mal avaliados, os pesquisadores simplesmente passam a reproduzir o pensamento dominante apenas para conseguir desenvolver sua carreira. Para alcançar posições importantes acabam fazendo concessões de verdade, mascarando o real e perpetuando equívocos e ideologias.
Muitos trabalham, poucos lucram
Um outro detalhe interessante é que, neste processo, muitos estão engajados em trabalhos complexos de produção, publicação e avaliação da qualidade da pesquisa. Mas, as editoras, que são o único elo da cadeia que efetivamente obtêm lucro, pouco contribuem para o processo e, acreditamos, na maior parte do tempo até atrapalham a construção de conhecimento.
As revistas científicas normalmente não dividem seus rendimentos com os autores; estes na verdade estão desesperados para manter seu status na comunidade científica e, assim, aceitam publicar em troca de nada. Nenhuma contrapartida material é ofertada. Também os avaliadores não recebem remuneração, pois fazer parte do corpo de revisores de uma publicação de renome os auxilia na formação de uma imagem de repeito num campo de ciência, o que atrai para o trabalho engajados e bem qualificados voluntários.
O que acontece é que nem autores, nem avaliadores, e muitas vezes nem mesmo editores, recebem qualquer pagamento pelas suas contribuições, ao passo que as empresas editoras cobram tanto a venda das revistas, como o acesso online; e existem mesmo aquelas que pedem (leia-se “exigem”) dos autores algum valor para “ajudar” na publicação de um texto maior, ou com gráficos em cores (ou as que cobram taxa de publicação).
Apesar de não oferecerem nenhuma contrapartida material, nem ao menos bolsas de pesquisa para estudantes, essas editoras amarram os direitos dos textos através de contratos de cessão de propriedade intelectual que expropriam dos pesquisadores muitas vezes até mesmo patentes e eventuais aplicações dos resultados de suas pesquisas. O interessante é que os pesquisadores, interessados em galgar melhores posições no seu campo de estudos, mal leem os contratos que assinam ao ceder um artigo para publicação. Em verdade, mesmo que lessem e se indignassem, de nada adiantaria, pois para ter seus trabalhos reconhecidos é praticamente obrigatório publicar nessas revistas mais bem ranqueadas. No fim, na maior parte dos casos nem mesmo um níquel volta para o pesquisador sequer dar continuidade a seus estudos.
E é interessante notar que os periódicos mais bem ranqueados são sempre aquelas de conteúdo restrito, pertencentes a uma grande editora internacional.
Claro, estas pesquisas são financiadas por alguém. No Brasil, o principal agente financiador de ciência é o Estado. Quase a totalidade da pesquisa aqui produzida de alguma forma recebe auxílio de fundos públicos; em outros países, como nos EUA, há também uma grande contribuição de fundações privadas – o que, de certa forma, contribui também para enviesar resultados, mas deixaremos este debate para uma outra ocasião.
A verdade é que este processo é como um empreendimento capitalista sem risco: o governo entra com o capital, os pesquisadores com o trabalho, mas são as editoras que concentram os lucros.
Conhecimento construído, conhecimento lacrado (a menos que você possa pagar por ele)
Um dos principais problemas deste sistema privatizado de disponibilização do conhecimento é que resultados importantes de pesquisa, bons artigos, informações que poderiam ser usadas para melhorar a vida das pessoas, acabam por ficar encarceradas por detrás de uma relação mercantil.
Os dados novos, reinterpretações, insights e etc. produzidos com grande esforço individual e mesmo coletivo, que deveriam ser disseminadas para contribuir com o estoque coletivo de conhecimento da humanidade e assim auxiliá-la em seu desenvolvimento, acabam sob o domínio de um punhado de capitalistas. E, pior, é esta mesma humanidade, através de impostos e outros processos, quem financia aquelas pesquisas.
Assim, muitas investigações que não tem acesso a aqueles bancos de dados que são propriedade das editoras, acabam por ser redundantes, porque boa parte da informação previamente produzida está fechada. Isto gera enormes gastos sociais com retrabalho.
Além disto, parte dos avanços de pesquisa podem estar caminhando muito mais lentamente do que deveriam simplesmente porque artigos-chave ou dados importantes estão indisponíveis. Ao fechar o acesso a resultados de pesquisa, impedindo o fluxo das informações, a ciência como um todo se desenvolve mais lentamente – e talvez até hajam casos de retrocessos causados por este modelo.
O próprio princípio de validade de ciência – fundamentado no reconhecimento dos pares – fica ameaçado. Como reconhecer como válido um conhecimento não disseminado, por se tratar de conteúdo restrito mantido por uma editora?
A sociedade se esforça para produzir ciência, engaja profissionais, pesquisadores, recursos escassos. Mas, no final, o resultado acaba concentrado por um número restrito de capitalistas que não quer usar aquele conhecimento senão para obter mais lucro.
Fugindo da armadilha
Felizmente existem alternativas. Tem surgido um bom número de publicações e periódicos que nasceram, e desejam permanecer, servindo gratuitamente as informações ali publicadas.
Na América Latina temos o Scielo[2] — um sítio que funciona como banco de dados coletivo de revistas científicas que prezam o acesso livre ao conteúdo. E há pesquisadores, sobretudo dos ramos de ciência crítica, que tem criado redes de disseminação e compartilhamento de informações as quais vem suprindo pesquisas com dados e interpretações alternativas.
No entanto, a promíscua relação que se estabelece entre pesquisadores de renome, empresas editoras, fundações privadas e mesmo o Estado, ainda endossa a subclassificação de iniciativas socializadas enquanto sobrevaloriza periódicos ligados a empresas capitalistas. Se faz necessária uma ruptura com este modelo que enriquece capitalistas enquanto ameaça a própria existência de ciência válida, para que esta possa se voltar à construção de conhecimentos que sirvam, e estejam disponíveis, a comunidade científica e a toda população.
Enquanto a prática editorial científica for um negócio, a própria ciência corre risco de se tornar inócua seja por vício de repetição, seja por simplesmente não estar disponível. E isto por conta de uma insignificância, a usura.
[1] Ver “Qualis Periódicos”: http://www.capes.gov.br/avaliacao/qualis.
[2] Ver “Scientific Electronic Library Online”: http://www.scielo.org/php/index.php.
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